Objetificação e Repressão do Corpo Feminino – Dois Lados da Mesma Moeda
Quando o corpo feminino sai dos padrões idealizados e abandona sua condição de objeto, ele passa rapidamente de venerável para obsceno, indecente e perigoso.
Antes de começar a escrever esse texto, eu dei uma boa olhada no meu corpo nu na frente do espelho. Queria poder te dizer que descobri algo surpreendente na imagem que vi refletida, mas a verdade é que não identifiquei nada de excepcional. Como a maioria dos corpos nesse planeta, o meu tem pernas, braços, tronco, cabeça. Já as partes e contornos que eu tenho em comum com aproximadamente 50% da população mundial também não têm nada demais. Mesmo assim, são eles que qualificam o meu corpo como algo obsceno, indecente e perigoso, algo que deve ser coberto tanto para a minha proteção – afinal, se alguém me assedia é porque eu não me cobri direito – quanto para a proteção dos pobres homens desavisados, vítimas de mulheres traiçoeiras e malignas que empunham armas impuras contra eles – seus peitos, suas curvas, suas vaginas.
Seria legal poder usar os peitos para espetar pervertidos, mas infelizmente não é o caso.
Eu sei o que você está pensando. “Mas se o corpo feminino é tão temido, como você explica a veneração por esses corpos em toda a mídia? Não dá pra abrir uma revista sem dar de cara com uma bunda!”. Pois é, a sua dúvida faz todo sentido. E já que você falou de bunda, vou usá-la como exemplo. Faz um favor pra mim, abre essa revista que você mencionou e dê uma boa olhada na tal da bunda. Mas olha mesmo, com atenção. Pronto? Agora me responde: essa bunda tinha celulite? Estrias, por acaso? Era uma bunda flácida? Meio molengona? Tinha espinhas? Manchas? Pintas? Era chata e sem graça?
Eu vou me arriscar aqui e chutar que a resposta para todas essas perguntas é um grande e retumbante “NÃO”. E vou mais longe ainda. Eu não vi essa bunda que você mencionou, mas me arrisco a dizer que era uma bunda bem durinha e redonda, sem nenhuma mácula para satisfazer os invejosos. Eu sei disso porque é assim que todas as bundas femininas costumam ser retratadas: tão perfeitas que beiram o impossível.
E na maioria das vezes, são impossíveis mesmo.
Entenda, o que é venerado em toda a mídia é uma idealização do corpo feminino, algo que praticamente não existe. Isso não quer dizer que uma ou outra mulher não tenha o corpo assim ou não quase alcance essa “perfeição”, mas elas são uma pequeníssima minoria em meio a uma vasta maioria de mulheres que carregam em seus corpos peles flácidas, celulites, pintas, manchas, estrias, espinhas, curvas a mais, curvas a menos, pêlos. Enfim, coisas normais que fazem parte de todo corpo (por mais que a mídia queira nos convencer que não).
Mais importante ainda que isso, o corpo feminino que é venerado na mídia é objetificado – isto é, as mulheres ali retratadas são muito mais um conjunto apetitoso de peitos e bundas a serviço do olhar masculino do que um ser humano. Levando-se esses dois fatores em consideração, podemos concluir que o que é venerado pela mídia não é o corpo feminino, mas sim o corpo feminino como objeto sexual. Como todo bom objeto, esse corpo está sempre dentro dos padrões pré-estabelecidos e é absolutamente passivo, por isso ele não chega a ser ofensivo ou indecente – afinal, os valores tradicionais machistas ditam que é assim que as mulheres devem ser: sempre dentro dos padrões estabelecidos e exultando passividade.
No entanto, quando o corpo feminino sai dos padrões idealizados e abandona a sua condição de objeto, ele passa rapidamente de venerável para obsceno, indecente e perigoso. Um bom exemplo disso é o que aconteceu em 2014 em uma exposição de arte da Mall Galleries, em Londres. Nessa ocasião, um quadro da artista plástica Leena McCall foi retirado da exposição, porque os frequentadores reclamaram que o seu conteúdo era “pornográfico” e “nojento”, e que poderia causar perturbação em crianças e adultos.
Eis o ofensor:
Aparentemente, o fato de a vulva da modelo do quadro fazer uma aparição discreta na pintura foi o suficiente para ofender profundamente alguns frequentadores da exposição. Essas mesmas pessoas provavelmente passaram impassíveis por outdoors mostrando mulheres com a lingerie enfiada no fiofó no caminho para a exposição, mas a visão de uma mulher confiante de si e dona de seu próprio corpo ostentando a sua vulva peluda com orgulho foi o suficiente para fazê-los subir nas tamancas. Basicamente, o corpo feminino retratado no quadro de Leena McCall ofende porque ele é um corpo feminino empoderado – ele não é um objeto impassível e, com seus pêlos à mostra, não corresponde ao ideal do corpo perfeito.
E isso nos leva a algo que eu gosto de chamar de vagina atômica – isto é, à visão disseminada na sociedade de que o corpo feminino (o real – que fala, pensa e respira) é uma ameaça que precisa ser contida a todo custo. Nesse contexto, tudo o que revela a sua condição de não-objeto sexual é rapidamente calado e reprimido. Exemplos dessa repressão podem ser encontrados facilmente em redes sociais como o Instagram, por exemplo, que vive bloqueando contas que postam fotos contrárias à noção idealizada de objeto sexual do corpo feminino. Por exemplo…
Os pêlos pubianos, tão reais e tão pouco idealizados, são terminantemente proibidos por lá:
A revista australiana Sticks and Stones teve sua conta do Instagram bloqueada quando postou essa foto de duas modelos de biquini mostrando pêlos na virilha.
Amamentar em público, então – jezuis, quanta indecência:
O Instagram também bloqueou contas de usuárias que postaram fotos de amamentação – sabe, aquele negócio que nos mantém vivos quando bebês?
Menstruação – uma função absolutamente normal do corpo feminino – também é considerada conteúdo obsceno:
A escritora Rupi Kaur teve sua conta deletada após postar a foto de uma mulher completamente vestida com as calças manchadas de sangue menstrual.
Corpos fora do padrão idealizado são conteúdo proibido no aplicativo de fotos:
A estudante Samm Newman teve sua conta deletada após postar uma foto de calcinha e sutiã.
E corpos pós-gravidez também são vistos como indecentes pelas políticas do Instagram:
Várias fotos de barrigas pós-gravidez também foram deletadas pelo aplicativo.
Tudo isso, vale dizer, enquanto fotos como as abaixo circulam livremente pelo aplicativo sem qualquer tipo de restrição:
Gostosa pode.
Esse sangue tá de boa.
Sem pêlo claro que pode, né!
Opa, vulva depilada tá permitido.
Sangue de omi tá valendo.
Em todos os casos citados acima, as usuárias não se calaram e o Instagram rapidamente se desculpou e reativou suas contas com as fotos ofensoras. Mas o fato de elas terem sido inicialmente deletadas diz muito sobre o tipo de mundo em que vivemos. Um mundo que não aceita o corpo feminino como ele é. Ou melhor, um mundo que só aceita o corpo feminino quando ele é passivo e obedece determinados padrões externos, deixando, assim, de pertencer às próprias mulheres que o possuem.
Pode parecer besteira falar da política de aprovação de fotos seletiva do Instagram, mas o que acontece no aplicativo é uma boa amostra do todo. Em todo o mundo as mulheres sofrem com o controle de seus corpos por um lado, e com o abuso e violência contra ele por outro, nessa eterna dicotomia que resulta de sua objetificação e consequente desumanização. Seja na Índia rural, onde as meninas não têm acesso à absorventes e são obrigadas a deixar a escola quando começam a menstruar; seja na Somália, onde a sexualidade feminina é tão inaceitável que a mutilação genital é prática comum; seja no Brasil, onde uma minissaia justifica um estupro.
Por isso, vamos entender de uma vez por todas. A censura, o controle e a violência são reais. Já a vagina atômica, sinto dizer, não é.
Leia também O Que Acontece Quando Mulheres se Recusam a Servir de Enfeite?
Augustus
April 23, 2015 @ 3:48 am
Parabéns pelos teus textos, quisera eu ter tamanha vocação e inspiração. Agora sou seu fã, obrigado por dividir tus pensamentos.
Lara Vascouto
April 23, 2015 @ 9:26 pm
Obrigada, Augustus! 😀
Camila
May 29, 2016 @ 5:43 pm
Lara, ótimo texto, gostei muito! O que vou lhe perguntar não tem muito a ver com o texto, mas foi algo que meio a cabeça nesse momento e, por isso, vou aproveitar a deixa. Qual a sua opinião sobre o Suicide Girls?
Alexandre Almeida
March 15, 2022 @ 6:15 pm
Excelente texto. Sou professor e vou utilizar como fonte de referência. Parabéns