Postura Corporal e as Relações de Poder entre Homens e Mulheres
Fecha essas pernas, menina!
Recentemente, li um artigo sobre um fenômeno que não é nem um pouco estranho para quem usa o transporte público: o chamado manspreading – ou algo como homenspalhando, em português. Você sabe do que se trata: homens que acham que tem o direito divino de sentar com as pernas abertas em ângulos obtusos, como se suas bolas fossem explodir se chegarem minimamente perto de suas coxas. Sabe, como se estivessem se espalhando mesmo no assento.
Postura corporal: fail.
Como usuária de metrô e ônibus, essa prática sempre me irritou profundamente porque, além de invadir o espaço dos outros, o ato de homenspalhar às vezes come dois assentos de uma homenspalhadada só, diminuindo a oferta de lugares disponíveis. Felizmente, parece que essa prática está sendo cada vez mais criticada, sendo a última boa novidade a campanha do Departamento Metropolitano de Transporte de Nova York, que pede aos ofensores para parar com a espalhação, faz favor.
“Cara, pára de espalhar, por favor. É uma questão de espaço”.
O que chamou mais a minha atenção, no entanto, foi a reação de certos espalhões à campanha. Um dos entrevistados disse: “Eu não vou cruzar minhas pernas como as mulheres fazem. Vou sentar como quiser”. Outro professou aos quatro ventos que “É mais confortável assim”, acrescentando que só se moveria por um idoso ou por uma mulher atraente. Cavando mais fundo na internet, descobri blogs e tumblrs dedicados à divulgação e crítica do homenspalhando, e fiquei passada quando li suas autoras falando que quando abordam os ofensores, pedindo que eles fechem as pernas, alguns acatam, resmungando mal-humorados, mas muitos simplesmente se recusam a abrir espaço. Alguns tem até a coragem de falar que sentar com as pernas fechadas pode danificar o seu precioso saco escrotal – argumento que foi totalmente desmentido por médicos, diga-se de passagem.
Lendo tudo isso não pude deixar de pensar nas posturas corporais adotadas por homens e mulheres no dia-a-dia e como elas influenciam a balança de poder entre os gêneros. Afinal, o homenspalhando, com as pernas arreganhadas e o saco livre para se espalhar no grande ângulo de quase 180°, além de ser uma postura corporal tipicamente masculina, é também uma linguagem corporal declarada e comprovada de dominância. Esta, inclusive, é uma regra básica do mundo animal: para expressar dominância, abra o corpo, pareça maior, ocupe espaço.
É por isso que o seu cachorro eriça o pêlo e levanta o rabo quando nota uma ameaça; ou que os vitoriosos jogam os braços para o céu; ou que os líderes andam de queixo erguido, apoiam as mãos na cintura e fazem gestos amplos com os braços. Dessa forma, o ato de homenspalhar não deixa de ser uma postura corporal que revela mais uma expressão da dominância do homem na sociedade.
Ah, mas mulheres são espaçosas também, pô – alguém vai dizer.
Sim, com certeza. Tem muita mulher que ocupa mais espaço do que deveria (outro dia uma amiga minha presenciou uma garota com as pernas preguiçosamente apoiadas ao longo de todo um assento no metrô), mas dificilmente você vai encontrar uma mulher homenspalhando. Isso é fato: sentar de pernas abertas é uma postura corporal exclusivamente masculina – tão exclusivamente masculina que quando eu falo “fulana abriu as pernas”, você já imagina a dita mulher em posição sexual (isso sem contar que o fato dessa expressão ser usada para situações em que alguém cede e se torna submisso daria todo um texto a parte). Basicamente, mulheres não podem abrir as pernas, a não ser que seja para fazer sexo. A gente aprende isso desde criança. Fecha as pernas, menina. É feio. Não é feminino. É grosseiro. Credo, fecha essas pernas, vão pensar que você quer dar (essa eu ouvi de uma amiga, quando criança).
E a gente vai aprendendo. Conforme crescemos, assumimos as típicas posturas corporais femininas – as pernas cruzadas; os joelhos apertados; uma mão segurando a outra – basicamente, o corpo fechado, ocupando o mínimo de espaço necessário e expressando a mais perfeita submissão.
Ai, mas só porque uma pessoa assume uma postura corporal submissa, não quer dizer que ela seja submissa – mais alguém vai dizer, irritado.
Mas é aí que a coisa fica realmente estranha. De acordo com um estudo de Harvard conduzido pela famosa psicóloga social Amy Cuddy, a postura corporal – postura física mesmo – que uma pessoa assume tem o poder de afetar os seus próprios sentimentos, comportamentos e até os seus níveis de hormônios. De forma resumida, o estudo provou que assumir uma postura de dominância – homenspalhando, por exemplo – por dois minutos que seja aumenta os níveis de testosterona da pessoa (o hormônio da dominância), diminui os níveis de cortisol (o hormônio do stress), faz com que ela se arrisque mais (pois se torna mais confiante), e seja mais bem-sucedida em entrevistas de emprego.
Veja o ótimo vídeo do TED com a Amy Cuddy aqui.
Basicamente, ao assumir posturas corporais de dominância e poder, você consequentemente se sente mais dominante e poderoso. Da mesma forma, ao assumir uma postura corporal de submissão, você se torna, sim, mais passível de ser dominado.
O que isso significa em um mundo em que as mulheres são ensinadas desde cedo a assumir posturas de submissão (e até coibidas de assumir certas posturas corporais de dominância, como homenspalhar), enquanto a postura corporal típica de repouso de homens grita dominância na cara da sociedade? Significa que machismo também está nas sutilezas e que nós temos também que pensar em linguagem corporal quando falamos sobre desigualdade de gênero, pois não vivemos mais pelas leis da selva e todos, homens e mulheres, deveriam ter o direito de se espalhar o quanto quiserem.
Menos no metrô, é claro.
Leia também os 4 Argumentos a favor do Cavalheirismo que Provam que Cavalheirismo é Machismo.
Luiz
January 20, 2015 @ 5:11 pm
O problema existe e é sério. Homem folhas atrasa o mundo. Porém há agravantes não citados, como a impossibilidade de uma pessoa (mulheres e homens) com mais de 1,90m de altura se alocarem em grande parte dos bancos oferecidos pelo sistema de transporte público do Brasil. Nesse caso, deveria a pessoa se privar do direito de sentar, assim como um obeso com vergonha de ocupar muito espaço pois não há um assento específico para lhe atender? Da última vez que discuti o assunto, (tenho 1,91m e sofro com os ônibus), fui acusado de ser igualmente machista…
Lara Vascouto
October 3, 2015 @ 4:52 pm
Existem casos e casos, Luiz. Todos devem fazer o melhor que podem para se adequar aos espaços, mas se a pessoa sabe, no coração (rs!), que seu corpo simplesmente não cabe ali, então não tem o que fazer. O problema é que muitos homens inventam problemas imaginários (como o caso das bolas de cristal, rs) para justificar um comportamento cretino e machista. Se não é esse o seu caso, sugiro que na próxima vez que você se ver numa situação em que suas pernas longas estão invadindo o espaço da pessoa ao lado, você peça desculpas e explique sua situação. Talvez seja uma boa ideia, até, se oferecer para mudar de lugar com quem está em um banco posicionado de forma mais conveniente pra você. Enfim, comunicação é a chave! 😉 Obrigada pelo comentário!
Lu
January 20, 2015 @ 7:26 pm
Sensacional! Lembrei de uma jornalista que trabalhou comigo que argumentava da necessidade de mulher só usar salto alto para ir trabalhar: “Salto alto impõe respeito”, ela dizia, “você fica mais alta, mais arrebitada, chama mais a atenção e os homens te respeitam mais.”
Agora tudo faz sentido.
Lara Vascouto
October 3, 2015 @ 4:45 pm
Faz sentido mesmo, Lu! Obrigada pelo comentário! Beijos!
José Gateiro
October 21, 2020 @ 10:08 am
Não são problemas imaginários. Você, por ser mulher, nunca saberá o que ter bolas, do mesmo que eu e qualquer outro homem jamais entenderemos o que TPM, cólica menstrual, a menstruação em si, a constante insegurança de sair sozinha quwndo der na telha, medo de ser estuprada (pesado, mas infelizmente um medo justificável) e nem por isso vou fazer pouco disso. Só quem sentiu a dor das bolas pode de mencionar e sim, não são de cristal. É só que doer e até se machucar lá é muito fácil. Homens e mulheres são diferentes demais e nunca se entenderâo completamente. Não é como se um homem obstreta – ou até mesmo uma mulher que não tem filhos – pudesse entender a gravidez na pele, ou como se eu soubesse o que é ser perseguido, ou olhado torto só por entrar em loja. Peço desculpas por ficar tudo letrinha e sem parágrafo. Digitei pelo navegador mobile. nota: pernas abertas tem motivos. Pernas extratosfericamente abertas sem ter 2 metros, não.
vivian
January 21, 2015 @ 3:30 am
muito bom.
quero dizer que eu me homenspalho (no caso, seria mulherespalho?) a vontade, especialmente se eu estou sozinha em ambientes públicos, como ônibus ou metrô, como forma de mostrar que não sou um alvo “fácil” a qualquer espertinho. e realmente me sinto mais foda e corajosa desde que passei a agir assim. legal ver que alguém já considerou estudar o assunto, é realmente empoderador.
meninas, espalhem-se e notem a diferença. abraços!
Lara Vascouto
October 3, 2015 @ 4:44 pm
Legal, Vivian! Espalha mesmo! rs! Beijos!
Ademir
December 14, 2016 @ 2:11 am
Na verdade é uma sensação de liberdade e não dominação. Só se torna machismo quando a pessoa se insiste em não cooperar. Eu por exemplo me incomodo com as pernas abertas dos outros mas quando não tem ninguém ao lado me espalho também. Mas tenho bom senso pra me ajeitar quando é necessário sem que seja preciso alguém me pedir.
Mariana
March 9, 2015 @ 8:42 pm
Agora… como podemos lidar com isso no transporte público? Eu me incomodo com as pernas dos caras, mas se eu abrir as minhas também, o cara não vai ligar, ou ainda pior, vai gostar. Já cheguei a colocar um fichário no meio do banco pra separar e a pessoa não se tocou. :/
Marianna Straccialini
April 13, 2015 @ 3:16 am
Xará de um N só, se espalhe, com raiva e não com ‘jeitinho’ – ou eles acham que estamos nos esfregando neles, infelizmente. Empurra mesmo, a modo de tentar obrigá-los a fechar as pernas, vai ver que eles vão ficar incomodados e alguns fecham as pernas sim, se não, peça: licença, você está ocupando muito do meu espaço, pode fechar as pernas um pouco? O que não dá é pra aceitar…
Lara Vascouto
October 3, 2015 @ 4:43 pm
É complicado, né meninas? Na minha opinião, acho que campanhas públicas sérias de conscientização, como a que fizeram em Nova York, também faria bastante diferença. O Estado não pode se omitir. Obrigada pelos comentários!
Henry
July 11, 2015 @ 4:46 am
Se uma mulher se “homem espalhar” apenas para oprimir um homem e se empoderar, não tornaria ela machista ou algo semelhante?
Lara Vascouto
October 3, 2015 @ 4:41 pm
Oi Henry! Na verdade, há um conflito na sua ideia principal. Uma mulher não precisa oprimir um homem para se empoderar. Pelo menos, não é isso o que queremos. O ideal seria se as mulheres pudessem adotar posturas corporais ditas “masculinas” sem sofrer retaliação com isso. Sem serem chamadas de vadias, oferecidas e grosseiras ao sentar com as pernas abertas, por exemplo. Agora, se uma mulher se homenspalhasse às custas de outras pessoas – ocupando mais espaço do que deveria no transporte público, por exemplo – então ela seria bem escrota, mas não chegaria a ser machista (ou algo do gênero), porque o machismo é um sistema de opressão. E nesse sistema, por mais que em uma situação específica ela consiga “dominar” um homem, ela ainda assim é vítima (até porque o fato de uma mulher resolver “oprimir” um homem para se empoderar é, em si mesmo, uma resposta a esse sistema de opressão que a oprime num contexto muito mais amplo).
Obrigada pelo comentário!
Ana
December 20, 2016 @ 3:01 am
Eu vejo essa correlação também com o padrão de beleza. Enquanto enquadram a mulher bonita quando está bem magra, o homem musculoso é que é belo. Dizem que homens, no geral, gostam de mulheres voluptuosas e mulheres gostam de homens magros (discordo veementemente, sobretudo do gosto masculino), mas não seria a magreza feminina um espaço diminuto que devemos ocupar socialmente? E os músculos do homem, que o deixam grande, imponente, que ocupa um espaço maior? Eu acho que todas as diferenças sociais servem para diminuir o espaço da mulher e aumentar o masculino.
Telma
January 17, 2017 @ 8:57 pm
pura verdade, mulheres são educadas a se contrair e não a expandir o corpo. quando comecei a praticar dança, já adulta, senti muita dificuldade de explorar certas posturas, principalmente as pernas abertas na lateral. fui percebendo alterações positivas no meu humor conforme conseguia avançar nessa prática e me desprender desses “moldes” vividos desde a infância (o caso é agravado por ter tido seios grandes muito jovem e ter me adaptado a contrair os ombros). profissionais da área sinalizaram exatamente isso, que uma mudança postural afeta a psiquê. forçar-me a expandir o peito, a abrir as pernas e ocupar mais espaço teve consequências diretas para minha autoconfiança.
manu
February 11, 2017 @ 1:39 pm
Eu tenho raiva disso desde os meus 6 anos de idade, quando meu irmão mais velho ia com as pernas abertas no assento do carro. Sempre reparei nessa postura. Nem sabia que tinha nome pra isso. Então sempre que estou em um ônibus, metrô, lotação, etc, e eu vejo que um cara vai sentar do meu lado, eu me espalho meeeeixmo. Eu quero que ele fique “ué, pq? Pq ela tá fazendo isso? Ela não precisa desse espaço. Ela está invadindo o meu espaço!”. Se alguém falar, eu respondo que homens tbm não precisam, mas fazem isso. Mas nunca nenhum me questionou. A D O R O a cara de indignação que eles fazem.
Postura corporal e as relações de poder entre Homens e Mulheres
June 21, 2018 @ 3:00 pm
[…] TEXTO ORIGINAL DE NÓ DE OITO […]
José Gateiro
October 21, 2020 @ 10:12 am
Não são problemas imaginários. Você, por ser mulher, nunca saberá o que é ter bolas, do mesmo que eu e qualquer outro homem jamais entenderemos o que é TPM, cólica menstrual, a menstruação em si, a constante insegurança de sair sozinha quwnedo der na telha, medo de ser estuprada (pesado, mas infelizmente um medo justificável no lixo de mundo em que vivemos) e nem por isso vou fazer pouco disso. Só quem sentiu a dor das bolas pode dimensionar e sim, não são de cristal. É só que doer e até se machucar lá é muito fácil. Homens e mulheres são diferentes demais e nunca se entenderâo completamente. Não é como se um homem obstreta – ou até mesmo uma mulher que não tem filhos – pudesse entender a gravidez na pele, ou como se eu soubesse o que é ser perseguido, ou olhado torto só por entrar em loja. Peço desculpas por ficar tudo letrinha e sem parágrafo. Digitei pelo navegador mobile. nota: pernas abertas tem motivos. Pernas extratosfericamente abertas sem ter 2 metros, não.