Pais Trapalhões em Sitcoms e o Problema do Falso Feminismo
Muito mais do que um insulto a homens, o estereótipo do Pai Trapalhão reforça ideais machistas antigos que ainda limitam a vida das mulheres.
Quando eu tinha mais ou menos onze anos de idade, a puberdade resolveu dar as caras. Infelizmente ela não me trouxe maturidade e sabedoria, mas sim cabelos indomáveis, aparelho nos dentes e alguma espécie de bruxaria que fez com que eu crescesse uns trinta centímetros de um mês para o outro. Foi nessa época (que eu, otimista, gosto de chamar de Os Anos que Me Obrigaram a Desenvolver Caráter) que eu desenvolvi um gosto pouco saudável por séries e sitcoms norte-americanos.
Melhores amigos durante a puberdade.
Com isso, eu não só adquiri um imenso conhecimento de valor duvidoso sobre seriados, como posso dizer que vi com meus próprios olhos um fenômeno interessantíssimo da televisão norte-americana: a súbita substituição da Síndrome do Pai Viúvo (1980 ~ 1995) pela Síndrome do Pai Trapalhão (1995 ~ 2010) em seriados de comédia sobre a vida em família.
Alguns exemplos de maridos e pais trapalhões.
Agora, a representação de pais na televisão sempre variou bastante, espelhando mais ou menos as mudanças na sociedade. Durante muito tempo os pais foram retratados como os chefes da família – a pessoa que tinha a voz de decisão e a quem as crianças obedeciam. Mais tarde, vieram os pais sábios e conselheiros, ainda chefes da casa (e suas esposas, ainda limitadas ao serviço doméstico), mas num papel mais de mentor do que de disciplinador. No final da década de oitenta, no entanto, as coisas viraram de pernas para o ar quando muitas séries resolveram retratar famílias desestruturadas, matando as mães e criando uma variedade de pais viúvos talvez um pouco atrapalhados, mas ainda assim sérios, responsáveis e compromissados com a criação de seus filhos.
Vale lembrar que, nessa mesma época, os pais que não tinham perdido suas esposas tragicamente ainda faziam um trabalho aceitável como pais, alternando doses de disciplina e suavidade.
O ano de 1995 marcou o fim dessa era, dando início a uma tradição (que apenas recentemente vem sendo subvertida) de pais trapalhões e imprestáveis – criaturas infantilizadas verdadeiramente imbecis, que se metem em confusões mais imbecis ainda e dependem completamente de suas esposas no âmbito doméstico. Em oposição à imbecilidade exagerada dos maridos, estas são sensatas, competentes e praticamente acima de falhas (além de lindas , é claro – lembrando que essa tradição absorveu também com maestria a misteriosa síndrome dos caras “feios” com minas gatas, infiltrada na cultura pop há décadas).
Agora, embora a explicação acadêmica para esse estereótipo tenha mais a ver com classe do que com gênero (estudos indicam que apenas pais da classe trabalhadora são retratados dessa forma), suas implicações em relação a papéis de gênero são tão inegáveis quanto complexas.
A primeira delas diz respeito a uma dicotomia de sentimentos que essa representação pode desencadear em pais e maridos da vida real: se por um lado ela insulta, por outro agrada ao representar a clássica fantasia masculina de ter uma mulher eternamente servil, indulgente e paciente com a sua imaturidade. Em outras palavras, uma esposa que é uma réplica de suas mães.
Já nas mães e esposas da vida real esse tipo de representação também tem um impacto, e é aí que a coisa fica realmente complicada. Para muitas mulheres, ver o retrato de uma esposa ultra-competente tendo que aturar os desatinos de um marido burro, imaturo e incapaz na televisão é como receber uma espécie de elogio há muito ansiado. Afinal, não há dúvidas que o trabalho doméstico e de criação dos filhos – que é cobrado unicamente da mulher e que, consequentemente, é realizado por ela, mesmo quando ela também trabalha fora – é subestimado e desvalorizado tanto pelos maridos, como pela sociedade como um todo. Com isso, as esposas lindas, competentes e moralmente superiores representadas na televisão ao lado de maridos que são o exato oposto disso são recebidas como uma espécie de reconhecimento e enaltação dessas mulheres.
Só que existem dois problemas com isso.
O primeiro é que isso acaba reforçando uma ideia falsa de feminismo como um movimento em que as mulheres lutam para dominar sobre os homens. De fato, muita gente acaba entendendo o estereótipo do marido babão como uma tentativa de empoderar mulheres em detrimento dos homens, reforçando, com isso, a ideia de guerra entre os sexos. É como se os criadores dessas séries tivessem recebido aulas sobre feminismo do cara mais machista da mesa do bar.
Oi! Será que você poderia nos explicar feminismo? É que queríamos fazer uma série…
O que nos leva ao segundo problema, que é o fato de a representação de esposas sensatas e competentes não ser um elogio a mulheres coisa nenhuma. Na verdade, ao retratar pais e maridos como incapazes de cuidar de uma casa e de seus filhos, reforça-se a ideia de que o trabalho doméstico deve ser exercido pela mulher. Afinal, elas são tão boas nisso, né!
O interessante é que, na maioria desses seriados com pais imprestáveis, as esposas competentes são donas-de-casa, enquanto eles saem para trabalhar. Ou seja, elas são muito competentes, mas apenas para manter uma casa e para cuidar dos filhos. Dessa forma, embora homens tenham todo o direito e devam, sim, se sentir ofendidos pela representação desses pais na televisão, o insulto acaba não tendo tanto peso, porque eles falham em algo que nem se espera que um homem faça mesmo.
A boa notícia é que o estereótipo do pai imprestável vem tendo sua presença diminuída em seriados nos últimos anos. A má é que ele é ainda bem frequente na publicidade. Ano passado mesmo, uma propaganda de Dia das Mães com o Fabio Porchat fez esse jogo falso feminista de tentar enaltecer a mulher como mãe, enquanto ridiculariza o homem como pai.
Um outro exemplo de machismo disfarçado de feminismo que usa essa mesma fórmula foi esse comercial ridículo da Bombril do ano passado.
É importante combater esse tipo de representação, pois além de reforçar dinâmicas opressivas para mulheres, elas reproduzem essas dinâmicas para as próximas gerações. Dessa forma, enquanto garotos aprendem que não precisam exercer a paternidade ou cuidar da casa, garotas aprendem a não esperar grande coisa de seus futuros maridos.
Pensando nisso, fica até fácil entender por que elogiamos tanto maridos que lavam a louça de vez quando, ou pais que sabem trocar uma fralda. Não é que eles são bons pais ou bons maridos – as nossas expectativas é que estão muito baixas.
Leia também sobre A Misteriosa Síndrome das Caras “Feios” com as Minas Gatas na Cultura Pop; e 4 Estereótipos de Mães que a Publicidade Precisa Parar de Usar.
Júlia
May 19, 2016 @ 1:29 pm
Amo seus textos!
Lara Vascouto
May 19, 2016 @ 2:06 pm
Que bom, Júlia! Obrigada pelo carinho! <3 😀
Pandora
May 19, 2016 @ 5:05 pm
Muitas coisas a serem exaltadas nesse texto, mas eu preciso falar desse comercial da Bombril!
Pensei que só eu tinha achado essa propaganda ridícula, absurda e um retrocesso.
Pior, com mulheres que eu até admiro =/
Na época lamentei que ninguém deu piti por causa dela (pelo menos eu não vi), mas ao menos a citação dessa propaganda nesse texto me consolou hehehe.
Quanto ao restante do texto, maravilhosa a análise dos estilos das sitcoms ao longo do tempo, e perfeitas as conclusões daí extraídas.
Como sempre, excelente ;]
Fernanda
May 20, 2016 @ 9:21 pm
Excelente análise! Inteligente, objetiva e coerente. Parabéns!
Karla
June 7, 2016 @ 2:27 pm
Menina, que mão para escrever! Da maioria dos textos que publicou, já tinha pensado sobre o assunto e comentado em algum momento com alguém. Parabéns pelo blog.
Lara Vascouto
June 7, 2016 @ 11:38 pm
Obrigada, Karla! 😀
Lucas
June 24, 2016 @ 4:33 am
Esse padrão pode ser visto em algumas sitcoms animadas também usam esse esteriótipo como o Ricardo e Nicole Watterson de “O Incrível Mundo de Gumball”, Hugo e Lila Test em “Jhonny Test”, Sr. e Sra. Turner dos “Padrinhos Mágicos”. Nesses casos, quem trabalha fora é a esposa e cabe aos homens cuidarem da casa.
Débora
July 2, 2016 @ 3:49 pm
Mais um excelente texto Lara!
Gustavo
August 30, 2016 @ 4:54 pm
Achei a crítica bem exagerada e com um tom inconformado. A impressão é que, não importa o que seja feito, sempre vão reclamar. Se a mulher é retratada como um bibelô, a mocinha a ser salva, reclamam. Se pelo contrário, ela é o porto seguro do homem e todos percebem a sorte do marido ao tê-la ao seu lado, também reclamam. E se os dois trabalham, e a mulher é a parte considerada a parte “razão” da dupla, também se reclama que ela está sendo colocada como controladora e megera. Difícil. Eu vejo seriados feitos dos anos 50 em diante e a mulher competente e que salva o dia sempre esteve em alta.
Lara Vascouto
August 30, 2016 @ 8:19 pm
Não é pra ser difícil criar personagens femininas que não sejam perfeitas ou objetos, Gustavo. Mulheres são tão complexas e falhas quanto homens. Nos retratar como perfeitas não nos faz nenhum favor.
Line
April 22, 2017 @ 5:52 pm
Retratar as mulheres como seres perfeitos lembra ”The Stepford Wives” ou ”mulheres perfeitas”. Sempre colocam a mulher como ”perfeita” apenas dentro do universo doméstico e maternal, mas no universo corporativo é sempre a estressada, a louca, a megera, mal comida e incompetente. Assim como sempre retratar homens como bobalhões no universo doméstico e gênios no meio corporativo. Ao contrário do que pensa o gustavo esses esterotipos limitadores não ajudam nem o homens e muito menos as mulheres. o gustavo mesmo sem perceber está descontente e reclamando de algo que não gostou. Não tem como agradar a todos, nem ao gustavo.