O Muro e a Saída da Infância na Cultura Pop

O Muro é uma HQ que retrata uma adolescente belga no final dos anos 80. Poética, sensível, cheia de referências musicais da época e muito bem ilustrada, se pauta num clichê da cultura pop: a saída da infância para a adolescência.

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O Muro, HQ de Céline Fraipont, conta a história de Rosie, uma adolescente belga no final dos anos oitenta que se vê perdida e sozinha no mundo. Sua mãe a deixou para viver em Dubai com o namorado e seu pai constantemente viaja a trabalho. Logo, a menina precisa assumir as rédeas de sua vida e as responsabilidades de um adulto, o que, combinado com a sensação de abandono, culmina em um comportamento rebelde e auto-destrutivo. O título da HQ faz menção a um muro, onde a personagem passa os dias sentada com a melhor amiga e onde conhece um jovem traficante judeu.

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Somos apresentados à menina e sua melhor amiga, que logo de cara já mostram esse comportamento adulto precoce que vamos ver em toda a história. A naturalidade com que pedem cigarros uma a outra contrasta com a ansiedade e a inocência a respeito da primeira menstruação.

Rosie se mostra carente de afeto e atenção quando pede para a amiga jurar nunca abandoná-la – o que eventualmente acontece, fazendo uma ponte sutil com a premissa de que as idas e vindas de pessoas moldam a personalidade da personagem. A HQ é recheada de perdas, que vão uma a uma definindo o caminho de Rosie e seus propósitos.

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Lendo não pude deixar de comparar a Rosie com a Tracy, uma das personagens principais do filme Aos Treze, interpretada por Evan Rachel Wood. Assim como Rosie, Tracy experimenta conflitos familiares e negligências afetivas, o que (também) gera uma personalidade insegura, auto-destrutiva e rebelde. Enquanto Tracy encontra conforto em meio a cena badalada de Los Angeles do começo dos anos 2000, com drogas, bebida e sexo, Rosie encontra o mesmo, sendo a única marca que diferencia a situação das duas a época em que ambas as histórias se passam. Tanto Rosie quanto Tracy possuem plena consciência da gravidade dos seus atos, preferindo ignorá-la, como se estivessem em uma busca de identidade própria ou de um alivio para toda aquela solidão e tédio diários.

o muroEvan Rachel Wood e Nikki Reed no filme Aos Treze

 

É engraçado reparar como tanto o cinema como a literatura se usam dos mesmos artifícios e clichês para representar essa passagem da infância para a adolescência meio pautada em Christiane F.

o muroCena do filme Eu, Christiane F. 13 anos, Drogada e Prostituída, baseado no livro que narra a história da personagem principal por meio de seus relatos. Christiane se tornou viciada em drogas aos treze anos.

 

Temas como abuso de drogas, álcool, sexo sempre contrastam com momentos de inocência infantil. No caso de meninas é interessante observar que o assunto da primeira menstruação serve como uma espécie de ritual de passagem, como se fosse uma exigência meninas começarem a apresentar um comportamento sexual e uma tendência à rebeldia assim que menstruam. O modo com que essa transformação é representada nos filmes e livros é sempre repentina e sem motivação nenhuma, além do fato da menina ter menstruado. A menstruação, nesse tipo de representação, é vista como principal culpada das inocentes meninas se tornarem mulheres sexuais e rebeldes.

O problema é que a idade média em que ocorre a primeira menstruação é entre os doze e treze anos. E com doze anos você não é mulher ainda. Você é uma criança. Eu ainda lembro de quando menstruei a primeira vez: ganhei da ginecologista varias tabelinhas para marcar meu ciclo, que acabaram sendo usadas como marca-páginas do Harry Potter.

Enquanto a cultura pop usa a menstruação como bode expiatório, na vida real sabemos que parte dessas mudanças comportamentais derivam da pressão social imposta às garotas assim que menstruam (e até mesmo antes) para serem mocinhas. A obrigação de ser e agir como uma mocinha leva meninas a desenvolverem uma maturidade e uma vida sexual precoce, muitas vezes com caras mais velhos, já que os meninos da sua idade são tidos como “imaturos” (dado que não passam pelas mesmas exigências as quais as meninas são submetidas). A cultura pop só passa o pano (e ainda transfere a culpa para uma condição biológica e natural) em cima de algo já enraizado culturalmente.

Observamos esse uso da menstruação em diversos filmes (Até Carrie, A Estranha desenvolve melhor seus poderes e decide se rebelar contra a mãe religiosa após menstruar). Na HQ temos um uso mais sutil do tema, combinado com a negligência dos pais e outros problemas da personagem.

o muroCena do filme Carrie, A Estranha de 1976.

 

Dramas que possuem como tema essa passagem brusca da infância para a adolescência acabam muitas vezes por serem apenas mais do mesmo, sendo da responsabilidade do roteirista a sensibilidade exigida para tocar o leitor. Nesse caso, não só da roteirista, mas também do ilustrador, que captou lindamente esse clima sombrio e angustiante da personagem e o colocou no papel.

Ricamente ilustrada, em escala preto e branco, a arte da HQ até me lembrou algo com xilogravuras, o que me deixou ainda mais animada e curiosa acerca de outros trabalhos do Bailly. Os álbuns e músicas apresentados no decorrer da história dão um toque ainda mais cativante e nostálgico. O final, entretanto, soa clichê e um tanto forçado, como se servisse unicamente para dar o impulso para a personagem principal mudar e arranjar um propósito de vida.

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