O Mundo de Aisha – A Revolução Silenciosa das Mulheres no Iêmen

Mistura de quadrinho com documentário, HQ conta a história de três mulheres iemenitas e suas vivências de liberdade e opressão.

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“Obrigadas a se casarem ainda meninas. Escravizadas, violentadas, por vezes assassinadas. Cobertas com o véu negro – o niqab – as mulheres do Iêmen parecem fantasmas. Contudo, pouco a pouco, com delicadeza, coragem e determinação, elas travam uma batalha corajosa por sua emancipação. Uma revolução silenciosa está em marcha para fazer valer seus direitos e sua liberdade. Aisha, Sabiha, Hamedda, Houssen e tantas outras: aqui estão algumas de suas histórias. Uma extraordinária reportagem em quadrinhos de Ugo Bertotti inspirada pelas imagens e pelas entrevistas da fotojornalista Agnes Montanari.”

O Mundo de Aisha é uma mistura de quadrinho e documentário. A fotojornalista Agnes Montanari estava no Iêmen, acompanhando seu marido em uma missão para o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, quando começou a se interessar mais pelo mundo muçulmano. Indo além de questões políticas e religiosas, como a Al Qaeda, Osama Bin Laden (originário da região leste do Iêmen) e as guerras tribais, Agnes ficou curiosa para descobrir mais sobre a vida das mulheres iemenitas, mascaradas pelo niqab (uma espécie de véu negro que deixa somente os olhos visíveis e esconde suas identidades) – e vivendo em uma sociedade patriarcal guiada por uma interpretação distorcida da religião, onde ao homem é permitido tratar a esposa como uma propriedade – podendo, inclusive, descartá-la quando lhe convém.

“Cobertas de um véu negro da cabeça aos pés, elas andam na rua silenciosamente como fantasmas. Elas se chamam Sabiha, Hamedda, Aisha, Nabiha ou Ghada. Tantos nomes, tantos desejos escondidos ou reprimidos, tantas vidas acorrentadas por trás dos niqabs. De todas essas mulheres percebe-se apenas seus olhares expressando medo e esperança.”

Agnes conversou com mais de trinta mulheres de diferentes classes sociais, idades e níveis de instrução para a construção da narrativa da HQ. Nota-se que a situação econômica é crucial ao destino dessas mulheres. Se a mulher vem de uma família de classe econômica baixa, consequentemente ela não terá dinheiro para pagar seus estudos, e o casamento se torna a única solução aceitável e lógica, pois seu sustento será responsabilidade exclusiva do seu marido. Por isso há o “costume” de tantos casamentos infantis.  A pobreza, guiada por uma interpretação distorcida da religião, é corrosiva e traz consequências irreversíveis ao destino dessas mulheres. Mesmo assim, no entanto, para uma iemenita que veio de uma família de classe econômica alta que permitiu o desenvolvimento de uma  educação de qualidade e profissão, há também a repressão e o preconceito no dia-a-dia pelo simples fato de ela ser uma mulher que, aos olhos dos homens está invadindo o seu mercado de trabalho.

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A primeira parte da HQ conta a história de Sabiha, vítima de violência doméstica por se debruçar na janela secretamente pela manhã, sem o uso do niqab. Na segunda parte, o leitor é apresentado a Hammeda, uma senhora empreendedora de vários restaurantes, que lutou para criar os filhos sozinha depois da morte de seu marido – razão pela qual é duramente criticada pela comunidade. A história mostra que ela começou sua trajetória nos anos 1960 enfrentando muito preconceito e alimentando soldados durante a guerra civil.

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Na terceira e última parte conhecemos a jovem Aisha e outras iemenitas que a cercam no seu cotidiano. Situações como frequentar um emprego no qual só existem homens, ser alvo de preconceitos, mesmo usando o véu, ou ser pressionada a se casar o mais rápido possível são abordadas no traço de Bertotti e nos registros fotográficos de Montanari, que também aparece na história.

Em um momento que achei particularmente interessante da HQ, Agnes está conversando com Sara, uma iemenita arqueóloga, e ela explica que o uso do niqab é uma espécie de “troca de favores” com os homens. Para os homens iemenitas, o niqab representa submissão, uma peça que impõe o local onde a mulher deve permanecer: com a identidade coberta, assim como, consequentemente, sua existência. Por outro lado, para algumas mulheres iemenitas, o niqab, ironicamente, traz vantagens, representando uma certa liberdade, pois elas não precisam se preocupar com padrões de beleza e com a cobrança da sociedade sobre seus corpos. No trabalho, o uso da peça de certa forma minimiza a invasão territorial dos homens, pois eles se sentem  intimidados com a presença de profissionais mulheres. Quanto menor a exposição da identidade dessas mulheres mascaradas, menos elas existem aos seus olhos, como se fossem fantasmas ou manchas negras do cotidiano.

Em relação a isso, achei interessante, também, uma parte da HQ em que a iemenita Sara reflete sobre o conceito de liberdade das mulheres de Florença, onde ela passou uma temporada para trabalhar no seu mestrado. De acordo com ela:

“Mas todo aquele esforço para estarem sempre atraentes…Em suma, não me transmitia uma ideia de liberdade”.

Às vezes, na nossa visão ocidental, quando imaginamos uma mulher muçulmana temos uma visão de submissão, liberdade reprimida, de uma mulher escravizada. Porém, o que Sara questiona é que a liberdade das mulheres ocidentais não é exatamente uma liberdade, mas um tipo de submissão capitalista para atingir sempre o padrão ideal de beleza, cobrado incessantemente pela mídia e pela sociedade. Será que as mulheres ocidentais são mesmo livres? Assim como a submissão das mulheres iemenitas foi abordada pela HQ, sabemos que mulheres em vários lugares do mundo sofrem desigualdades pelo simples fato de serem mulheres. O que muda é a forma como essa desigualdade é retratada, seja por influência da religião ou da política. Portanto, ainda há muito o que refletir sobre a liberdade das mulheres em cada país e região. (Essa discussão me fez lembrar desse vídeo, que aborda o direito de escolha da mulher de usar o hijab. Vale a pena conferir).

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Nos últimos anos tenho me interessado muito pela abordagem da cultura muçulmana através também do cinema, com a desconstrução das desigualdades e opressões que essas mulheres enfrentam. Por isso, aproveito para deixar algumas recomendações de três grandes filmes iranianos, que refletem sobre a questão de ser mulher na sociedade iraniana, incluindo vários assuntos semelhantes aos das mulheres iemenitas de O Mundo de Aisha, como casamento, educação, profissão e preconceitos. Confira abaixo:

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Enfim, gostei muito da HQ, e me emocionei cada vez que descobria mais sobre a história das mulheres iemenitas, pelo fato de ser mulher e me imaginar numa sociedade como aquela, onde a questão da liberdade é totalmente distorcida pela sociedade patriarcal e pela religião. Fiquei curiosa para ver todas as fotos que a Agnes tirou durante sua estadia no Iêmen.

A edição da Editora Nemo está muito caprichada, e espero que venham mais obras abordando a desconstrução do “ser mulher” em vários locais e culturas diferentes.

*Texto postado originalmente em Delirium Nerd.

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