O Dia em que me Olhei no Espelho e Não Reconheci o Meu Próprio Rosto

Você conhece seu próprio rosto? Como os padrões de beleza fazem com que não nos reconheçamos em nós mesmas.

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Antes de começar esse texto, eu proponho um pequeno exercício: feche os olhos, respire fundo e se imagine. Como você é? Quais são os contornos do seu rosto, as linhas do seu corpo, o cair dos seus cabelos. Você se imaginou sem ou com maquiagem? Você estava ou não depilada? Seu cabelo estava em seu estado e cor natural? Você estava com um sutiã de bojo?  

Onde eu quero chegar com isso? A uma reflexão que nos faça perceber como a nossa visão de nós mesmas está – como tudo a nossa volta – contaminada pelos padrões impostos de beleza e cuidado da nossa sociedade.

Eu nunca tinha parado para refletir sobre isso, para mim maquiagem sempre foi uma forma de me sentir mais bonita e qual o problema disso? Mas, acontece que fui umas daquelas adolescentes que acordava mais cedo para passar maquiagem e dar um jeito no cabelo. Não podia ir nem até a padaria sem passar uma base no rosto e um rímel nos olhos – no mínimo. Sempre aparecia alguma amiga, conhecida, vizinha que dizia: queria ser como você, sempre arrumada. Mal sabiam elas que eu simplesmente não conseguia me apresentar em sociedade (e para mim mesma) sem a máscara proporcionada pela maquiagem.

Vaidade? Longe disso, hoje entendo como aquela necessidade era uma prisão: eu simplesmente não podia, não conseguia, – não concebia a ideia – de ser vista e me ver como realmente sou. Porque, para mim, o que eu era precisava ser melhorado e ficava incrivelmente melhor com maquiagem, e quando fechava os olhos e me imaginava, queria ser aquela versão “melhorada”.

Minha máscara do Batman

Talvez nesse ponto você ache que eu esteja impondo alguma ideia de que você não pode usar maquiagem nunca mais. Não me levem a mal, ainda passo minha base com protetor solar diária, rímel e, quando estou mais ousada, meu delineador de gatinho (que já chegaram a me perguntar se era tatuagem, porque nunca estava sem ele).

A diferença é que, hoje, estar sem maquiagem não me faz sentir menos eu mesma. Explico. Sabe quando um super-herói coloca sua máscara e de repente se torna o Batman, por exemplo? Era como se, ao passar todos aqueles produtos – que dizem que precisamos –  me tornasse aquilo que considerava ser eu.

maquiagemNa imagem vemos a rainha malvada do clássico filme da Disney Branca de Neve. O filme é um exemplo  de como desde cedo somos ensinadas que o nosso valor é medido pela beleza, já que a toda poderosa rainha se sente ameaçada por sua enteada, que supostamente é mais bonita que ela.

 

Essa necessidade de me apresentar para mim e para o mundo como algo bonito, escancarava como nosso valor, especialmente como mulher, está condicionado a nossa aparência. Se eu não for bonita, não importa ser inteligente, bem-sucedida, achar a cura de uma doença: serei um fracasso. Um fracasso em que papel? De ornamento, com certeza, mas não só isso.

Com as mudanças que a modernidade proporcionou, estar bonita é só mais uma das obrigações impostas às mulheres, porque além de ser/estar bonita você tem que cuidar dos seus filhos, ter um bom emprego, ter estabilidade emocional, achar um homem adequado e claro, satisfazê-lo. Mas, isso é assunto para outro texto.

Momentos que me fizeram refletir

Voltando, só cheguei a essas reflexões depois de um processo lento de desconstrução. A primeira vez que parei para refletir no assunto foi quando percebi que nem minha família tinha me visto sem maquiagem durante a adolescência. Certo dia, há alguns anos, minha mãe, comentando casualmente sobre espinhas, me cutucou e disse: “Você teve sorte, nunca teve espinha nenhuma na adolescência”.

Parei por um instante – eu tive, sim, espinhas como qualquer adolescente – porém, cobri todo o sinal da mudança hormonal que minha pele estava manifestando o melhor que pude, porque aquilo era considerado feio. Fiquei com aquilo em meus pensamentos por algum tempo, mas deixei a reflexão passar. Certas coisas são mais fácies de aceitar quando simplesmente não pensamos nelas, não é mesmo?

Se você olhar a minha foto, vai ver que não há nenhuma característica que se destaque – considerando os padrões de beleza – que possa justificar essa necessidade gritante que eu tinha de me maquiar.  Sendo branca, com traços europeus, estou bem próxima ao padrão aceito e cultuado, mas isso não impediu que ele me acertasse em cheio: nas revistas teen, na televisão, nos clipes musicais da MTV, nos outdoors.

Entretanto, nunca é demais dar uma afinadinha no nariz, não é mesmo? Escrevo aqui a minha experiência individual, que vem de um lugar de privilégio, mas não imune a socialização e a indústria da beleza. Se para alguém que se encaixa mais confortavelmente na descrição do que é considerado bonito era impensável sair sem uma base cobertura pesada no rosto, imaginem para quem é desviante. Para quem, como dizem, “não é mina padrão”.

Outro momento que a minha pulga atrás da orelha foi cutucada, foi quando um dos meus primeiros ex-namorados comentou que ele achava engraçado eu passar maquiagem para tomar café da manhã com os pais dele. Mal sabia ele que eu dormia de maquiagem. Me peguei pensando naquele instante como ser homem era mais fácil: só tomar uma banho, passar um perfume, estar com o corte de cabelo em dia e pronto.

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Houve um momento decisivo que levou a minha obrigação de escrever esse texto hoje: quando me olhei no espelho – sem maquiagem – e me perguntei: quem é essa pessoa? Eu simplesmente não me reconhecia no meu próprio reflexo. Aquela não era a projeção que eu tinha de mim mesma na minha mente. Isso aconteceu em um momento bem delicado da minha vida. Estava deprimida ao ponto de minha (criada) necessidade de ser bonita, para mim e para o mundo, deixou de importar.

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Da dor veio uma revolução: quando me olhei no espelho, primeiro veio o choque, o estranhamento.Depois comecei a perceber umas pintinhas engraçadas que tenho nas bochechas, como as veias das minhas pálpebras são roxas, como tenho uma cicatriz misteriosa no nariz. Até me achei bonita e quase sorri. Depois, veio a revolta:  por que esse rosto não era aceitável, não era suficiente, não era eu? Eu fiquei realmente furiosa. Depois da tempestade, veio a calmaria e essas reflexões que agora lhes apresento.

Como chegamos a esse ponto?

maquiagemNa foto a atriz e modelo Cara Delevingne é apresentada “sem” e com maquiagem.Um olhar mais atento mostra o contrário. Foto comparativa: Catraca Livre.

 

Vocês já viram aquelas matérias que dizem “famosas que ficam bonitas sem maquiagem” que os homens que supostamente preferem “mulheres sem maquiagem” adoram? Nós mulheres, quando abrimos essas matérias, percebemos facilmente que as celebridades estão com maquiagem sim, no mínimo base, corretivo, rímel, sombra, até algum brilho labial.

O ponto é: aprendemos a valorizar a beleza masculina na sua forma rústica (sem retoques, vide os lumberssexuais). Em contraponto, a beleza feminina, até em sua apresentação mais “natural” é trabalhada com toda a tecnologia que a indústria da beleza pode oferecer e inventar para obter seu lucro. Já que, lembrando, o que é mesmo natural do corpo feminino é hostilizado,  não-higiênico,  tabu (como a menstruação). Assim, somos condicionadas a odiar nossos estados orgânicos, porque a beleza feminina que a sociedade cultua é artificial.

maquiagemNa foto, a protagonista da série Vampire Diaries interpretada por Nina Dobrev, aparece dormindo. Repare que suas sobrancelhas estão delineadas. Provavelmente a atriz está usando sombra, rímel, iluminador, blush…

 

Após o incidente do espelho, fiquei uns 3 meses sem passar nada no rosto – nem o protetor. Fui a padaria sem maquiagem, fui fazer compras, fui ao shopping, fui às aulas… O que para algumas não é nada demais, para mim foi uma coisa incrível: a liberdade de não precisar se arrumar para ir nos lugares e se sentir bem com isso, era algo que eu não conhecia. Foram em torno de seis, sete anos (desde a puberdade) sem deixar de passar maquiagem para nada.

Pedidos sinceros

Deixo aqui um apelo para nossas amigas, vizinhas, conhecidas: não ridicularizem mulheres que estão sempre arrumadas (infelizmente isso ocorre). Troque o “você é tonta por se arrumar assim todo dia”, por dizer para sua amiga que ela é bonita independente disso tudo, porque ser bonita é ser o que você é.

Tente também entender quando ela disser que “precisa” disso para se sentir bonita. Existe todo um sistema que quer nos vender produtos e, para isso, nós temos que acreditar que precisamos deles. E a indústria da beleza é mais que competente em nos fazer comprar essa ideia.

Reflita mais um pouco e imagine  estar suscetível a tudo isso e querer usar produtos que simplesmente não são feitos para seu tom de pele. Imagine querer se encaixar nesses padrões e simplesmente não ter dinheiro para seguir tudo isso. Não há nada de errado em gostar de maquiagem, de passar um batom vermelho e se sentir bonita. O problema é ser dependente desses produtos.

Além disso, não invejem as mulheres que estão sempre impecáveis, sempre bem vestidas, sempre “bonitas” (dentro do padrão higienista de beleza, com depilação em dia, unha feita, etc). As mesmas pessoas que elogiam uma mulher que está sempre arrumada, são aquelas que ao vê-la sem maquiagem dizem que ela parece “cansada” ou “abatida”Reforçando que ela só é “bonita” quando se arruma.

Assim, os chamados “favores” que as pessoas que se encaixam no padrão recebem, são apenas a outra face da mesma moeda que nos oprime todos os dias. O mesmo ocorre, por exemplo, quando homens são “gentis” por conta do cavalheirismo com mulheres que se enquadram nos padrões de comportamento eleitos como adequados. Contudo, isso implica dizer que as mulheres que não se encaixam neles não são dignas de respeito.

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Não alimente a semente da rivalidade feminina.Reflita: o que nós escondemos por trás dessa máscara de aparência? Quem nós somos, o que sentimos (chorar borra a maquiagem, não é mesmo?) e, quem sabe, como estamos presas a isso ou aquilo para nos sentirmos dignas ou desejáveis?

Cuidado também com as desconstruções. Não é porque você escolheu resistir aos padrões e não se depilar, não usar maquiagem, não pintar a unha do pé, não querer por silicone, que todas nós devemos fazer o mesmo.  O que não devemos é ser escravas desses procedimentos.

A desconstrução é bem-vinda, mas não quer dizer que necessariamente vamos parar de adotar algum comportamento. Entender o que nos leva a ter essas necessidades é pré-requisito para tomarmos decisões mais livres, mesmo que o gosto seja algo construído. Eu uso minha base com protetor solar – quase todo dia – mas acreditem, hoje sei que não preciso dela para me sentir EU mesma. E isso, minhas caras, faz toda a diferença.

Só a ponta do iceberg

Falei sobre minha experiência com maquiagem, mas isso facilmente se aplica a outras coisas que aprendemos desde muito cedo que precisamos: como usar o desconfortável sutiã de bojo, estar com a depilação em dia, tirar a sobrancelhas, fazer as unhas, toda a preparação que você faz para quando tem um encontro.

Todos esses rituais de “beleza” que aprendemos a ver como essências nos aprisionam e nos condicionam a achar que nossos corpos, nossos rostos, nosso ser não é o suficiente. E isso não é verdade.

Termino deixando a dica de um outro texto que aprofunda essa reflexão: O mínimo esforço possível pra transar com um cara — e como isso melhorou minha vida sexual.

Leia também O Grande Erro do Novo Comercial do BoticárioNão, você não tem que ser bonita; e 6 Artistas Não-Brancas que se Tornaram Brancas em Prol de suas Carreiras.

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