O Que Aprendi Quando Conheci as Pessoas que Militam pela Memória da Ditadura no Brasil
Quando comecei a estagiar em uma instituição de direitos humanos voltada à preservação da memória da ditadura no Brasil, mal sabia eu que o trabalho seria mais sobre o presente do que sobre o passado.
Quando eu entrei no meu atual estágio, em uma instituição de direitos humanos voltada à preservação da memória da ditadura, meu entendimento de História recente do Brasil não passava muito do básico aprendido na escola. Na entrevista, meus atuais chefes enfatizaram: interesse pelo tema é fundamental. Para mim não havia problemas: em meu último ano de graduação em jornalismo, eu já acumulo uma tímida bagagem de estudo de pautas de direitos humanos – e consequentemente da esquerda – e algumas produções acadêmicas voltadas ao tema. Via a proposta de estágio como uma forma de aprender mais sobre a História, ouvir relatos de pessoas interessantes e entender o papel da minha profissão naquele tempo.
Pouco eu sabia que o trabalho seria mais sobre o presente do que o passado. Nas palestras e debates que presenciei, ouvi um pouco do que sabia, mas que soube que não era do conhecimento de todos. Como, por exemplo, que o golpe civil-militar de 1964 não foi uma ação que ocorreu do dia para noite (“um cara acordou de mal humor e decidiu dar um golpe”, como meu chefe, que é ex-preso político, costuma dizer), mas sim um ato premeditado – e inclusive tentado – por muitos anos. Eu sabia da participação determinante do governo dos Estados Unidos e de grandes empresas brasileiras. Eu só não sabia o que tudo isso significava.
É claro que o período político atual ajudou. O golpe é diferente, mas, da mesma forma, foi arquitetado por pessoas que têm uma visão de Brasil mais conservadora e capitalista. E, da mesma forma, pessoas que têm uma visão de país voltada para o cumprimento dos direitos humanos, se posicionam contra.
No entanto, o que mais me surpreende é como o debate sobre o período ditatorial brasileiro é atual. Entender o que foi o regime e como ele afetou a sociedade é também entender o presente. Não só na questão do atual e conturbado cenário político, mas em outros aspectos.
Vamos aqui usar um exemplo gritante: a violência policial. A polícia militar é um braço do Exército brasileiro, que foi reestabelecido durante a ditadura militar. O corpo militar que tomou o poder não sabia como lidar com as ruas e por isso recorreu à polícia. Essa polícia foi a responsável pelas repressões à população nas décadas de 1960 e 1970 e alguns de seus membros integraram forças de opressão, como a Operação Bandeirantes – que comandava o DOI-Codi em São Paulo – e o Esquadrão da Morte.
Nada muito diferente dos dias atuais. Em um dos eventos que participei esse ano, durante um debate, um homem tomou a palavra. Ele era professor de história da rede pública e muitos de seus alunos viviam na periferia de São Paulo. Ele expressou sua preocupação em relação ao ensino sobre o Período Militar no Brasil a esses jovens. De acordo com ele, é muito difícil para adolescentes que enfrentam a realidade da atuação policial (militar) nas comunidades brasileiras enxergar a diferença entre hoje e o período ditatorial.
É possível entender como isso é preocupante? Meu chefe, quando busca explicar a novos públicos sobre como era viver na década de 60 e, principalmente, de 70, uma palavra que ele usa muito é medo. Claro que ele estava em uma posição vulnerável como membro ativo da resistência, mas esses jovens periféricos não estão também? Meu chefe costuma relatar sobre a sensação de insegurança que pairava e como liberdades e direitos eram minados. Nada que não imaginamos ser a vida dos alunos daquele professor.
Essa polícia repressora – e assassina – do período militar não foi condenada. Até hoje, muitas pessoas acreditam que as pessoas que morreram nas mãos dos torturadores e militares eram terroristas que mereceram aquele fim. A visão do período como um governo que cometeu crimes contra a humanidade para manter o privilégio de alguns poucos não é, infelizmente, unânime no Brasil.
Isso é grave porque significa que, por exemplo, ao se interpretar a Lei da Anistia, além dos resistentes, também foram absolvidos os torturadores. Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi de 1970 a 1974 e homenageado pelo Deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) no plenário da Câmara, morreu reconhecido como torturador, mas sem um julgamento. Isso significa que o país nunca reviu a impunidade aplicada aos ditadores, torturadores, financiadores e administradores da ditadura civil-militar. Significa que hoje a Polícia Militar sobe o morro, mata um jovem e registra o ocorrido como “resistência seguida de morte” – expressão curiosamente comum nos laudos de perseguidos da ditadura.
Significa também julgamentos parciais e preconceituosos, porque a Justiça brasileira aprendeu com a impunidade que não é necessário ser uma via de mão dupla. Meu chefe ficou preso por dois anos antes de ser julgado, prática comum da Justiça Militar no período (que na época julgava civis que eram acusados de atentar contra a segurança nacional, o que é extremamente irregular). Hoje, 40% dos presos brasileiros, de acordo com Departamento Penitenciário Nacional (Depen), são provisórios e muitos esperam o seu julgamento por anos. (Para mais informações, ver o Mapa das Prisões).
E isso é apenas um exemplo. É possível falar também sobre o patrocínio privado de atos políticos questionáveis, da impunidade parlamentar e da negligencia com as pautas relacionadas aos direitos humanos. São apenas alguns exemplos de que, em muitos aspectos, a ditadura deixou heranças que se enraizaram na sociedade brasileira.
No entanto, o mais importante que aprendi e quero repassar é: a História não é uma linha – é um ciclo. E se as devidas providências de Memória e Justiça não forem tomadas tudo pode se repetir ou simplesmente continuar. Estudem História.
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