Será a Manic Pixie Dream Girl a Versão Moderninha de Bela, Recatada e do Lar?

Quando velhos ideais machistas ganham uma roupagem moderninha para agradar as novas gerações.

manic pixie dream girl

Em 2016, a Veja publicou um perfil para lá de questionável de Marcela Temer. Mostrando que é fã dos hediondos guias “da boa esposa” da década de 1950, a revista definiu Marcela como ‘bela, recatada, e do lar’ em tom dolorosamente elogioso, fazendo um desserviço tanto a mulheres (e incluo aqui a própria Marcela), como à população brasileira como um todo, ao tentar apresentar uma versão respeitável e gostável de Michel Temer.

manic pixie dream girlNão colou, migos.

 

A internet não perdoou. Por vários dias, milhares de mulheres reagiram e postaram suas próprias versões do que a revista parece achar que as mulheres deveriam ser, sob a hashtag irônica #BelaRecatadaeDoLar.

A reação não foi contra Marcela Temer ou contra donas de casa e mulheres que se encaixam nesse perfil, mas sim contra a exaltação de “qualidades” que restringem a liberdade das mulheres há séculos. O “bela” representa a objetificação da mulher, o seu esvaziamento como ser humano tão complexo quanto o homem. O “recatada” representa um aprisionamento de ordem moral, na medida em que a sexualidade da mulher é fortemente reprimida e controlada no sistema machista. E o “do lar” representa o seu aprisionamento na esfera privada como um bem do homem, com a sua liberdade de atuar ativamente na vida pública cerceada pelas responsabilidades de mãe e esposa.

manic pixie dream girlA resposta foi enfática.

 

Ou seja, por trás do ideal bela, recatada e do lar está a clara mensagem de que mulheres são menos (competentes, complexas, humanas) do que os homens e, por isso, sua posição deve ser a de coadjuvante servil na vida deles, os heróis protagonistas. Não que seja preciso destrinchar essa mensagem a partir do ideal machista de mulher perfeita, claro. Muitos homens ao longo da História reforçaram essa visão com todas as letras.

“O homem é, por natureza, superior e a mulher inferior; um governa e o outro é governado. (…) Uma esposa adequada deve ser tão obediente quanto um escravo”. – Aristóteles

“É uma lei da natureza que mulheres devem ser dominadas pelos homens” –  Confúcio

“A natureza quis que as mulheres fossem nossas escravas. Elas são nossas propriedades, nós não somos as delas. Elas nos pertencem, assim como uma árvore frutífera pertence ao jardineiro. Que ideia insana exigir igualdade para mulheres! Mulheres não são nada além de máquinas de produzir crianças”. – Napoleão Bonaparte

“Toda a educação da mulher deve ser planejada em relação aos homens. Para agradar aos homens, ser útil a eles, ganhar o seu amor e o seu respeito, criá-los enquanto crianças e cuidar deles enquanto adultos…esses são os deveres das mulheres em todas as eras e é isso que elas devem ser ensinadas desde a infância”. – Jean-Jacques Rousseau.  

Está aí ainda? Não jogou o computador pela janela? Legal, porque é agora que eu vou começar a falar sobre o que eu realmente queria falar.

Pois bem. Essa história do bela, recatada e do lar ficou um bom tempo na minha cabeça. Nesse meio tempo, peguei passando na televisão um filme com a Zooey Deschanel, o que inevitavelmente me fez pensar no cansativo estereótipo da Manic Pixie Dream Girl: a personagem feminina adorável, esquisita e cheia de vida que vive mudando a vida de protagonistas homens depressivos filmes afora.  

manic pixie dream girlTalvez você não conheça o termo Manic Pixie Dream Girl, mas definitivamente sabe do que estou falando.

 

E foi então que eu me perguntei: será a Manic Pixie Dream Girl a versão moderninha de bela, recatada e do lar?

Ok, uma coisa de cada vez. Primeiro precisamos esclarecer o que é exatamente a Manic Pixie Dream Girl. E para isso, vou pegar emprestada a sua definição original, de uma crítica do filme Elizabethtown de 2007. Nessa ocasião, o crítico Nathan Rabin cunhou o termo para falar sobre a surreal personagem de Kirsten Dunst que, de acordo com ele:

“(…) interpreta um tipo de personagem que eu gosto de chamar de Manic Pixie Dream Girl (veja Natalie Portman em Garden State como outro exemplo). A Manic Pixie Dream Girl existe unicamente na imaginação febril de roteiristas-diretores sensíveis para ensinar jovens homens profundos, cismados e sentimentais a aproveitar a vida e seus infinitos mistérios e aventuras.”

A Manic Pixie Dream Girl (MPDG, para ficar mais fácil) é, portanto, aquela personagem feminina adorável – com ótimo gosto musical e pequenos defeitinhos que a deixam mais adorável ainda (como falar rápido e demais, se interessar por coisas insignificantes, ser adoravelmente impulsiva) – que existe completamente em função do protagonista homem. Com alguma sabedoria misteriosa baseada em alegria de viver, a MPDG está ali para fazer com que aquele pobre protagonista profundo e deprimido (ou profundamente deprimido, na verdade) aprenda a olhar para a vida de forma diferente e, com isso, consiga sair do seu status melancólico e encontrar a felicidade.  

manic pixie dream girlCom métodos tão bizarros quanto ela própria.

 

Em suma, o estereótipo da Manic Pixie Dream Girl é definido principalmente pelo seu status secundário e por uma falta de vida própria. Não de energia vital, note, porque isso ela tem de sobra. Mas de um histórico, problemas e questões de ordem pessoal, ou até interesse de ir atrás de sua própria felicidade, ao invés da felicidade do protagonista. Nesse sentido, ela é quase como a versão feminina branca (porque a MPDG é sempre branca) do estereótipo do Negro Mágico.

manic pixie dream girlCom a diferença que o Negro Mágico costuma aparecer apenas em momentos cruciais da trama para ajudar o protagonista branco com a sua sabedoria mística, enquanto a MPDG é uma presença constante na tela e atua como um ideal de mulher desejado pelos homens.  

 

E o que é que a Manic Pixie Dream Girl tem a ver com o famigerado bela, recatada e do lar? Bem, em primeiro lugar, ela tem essa característica principal, que é a de ser uma personagem coadjuvante a serviço de um homem. Exatamente o que prega o ideal bela, recatada e do lar.

Em segundo lugar, elas são sempre belas. Não lindas, nem gostosas, mas belas. Isso é importante, porque existe algo na palavra “bela” que evoca uma dignidade e discrição que outros adjetivos não evocam. Ela traz uma ideia de beleza classicamente feminina, não-ameaçadora, não-sexualizada. Exatamente como uma “mulher de família” deve ser. E exatamente como são as Manic Pixie Dream Girls. Embora sejam desejadas pelos protagonistas, elas são sempre muito femininas, e nunca hipersexualizadas. Consequentemente, elas têm como característica também uma boa dose de recato – não tanto porque são ativamente recatadas, mas pelo fato de sexo nunca ser algo que elas evocam logo de cara.

Agora, é verdade que algumas características distanciam as MPDG do ideal bela, recatada e do lar. Mas não tanto assim. Por exemplo, embora raramente sejam “do lar”, elas também raramente são profissionais focadas em alguma carreira e não é raro que exibam alguns gostos e habilidades tradicionalmente associados a donas de casa (como gostar de cozinhar cupcakes e cookies, por exemplo, ou ser fã de patchwork e tricô). Além disso, elas costumam ser livres e ativas sexualmente mas, como já foi apontado, o sexo delas é “digno”, discreto e não-ameaçador.

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Por esses motivos, penso que a MPDG nada mais é do que o bela, recatada e do lar revestido de uma roupagem moderninha, mais atraente para as novas gerações. Uma versão que mistura o clássico ideal machista com o fascínio pela emancipação sexual feminina e certa relutância em relação à sua emancipação do lar. 

manic pixie dream girlO resultado é tão estranho e irreal quanto se poderia esperar.

 

Pensando um pouco mais além, talvez a MPDG seja apenas a versão do ideal bela, recatada e do lar para machistas de esquerda: homens supostamente profundos e reflexivos, deprimidos e frustrados com os valores deturpados da sociedade capitalista, que concedem às mulheres alguns direitos, mas não todos. Porque, bem, no fim do dia eles ainda esperam que uma garota adoravelmente esquisitinha e desapegada largue tudo o que estava fazendo para resgatá-los de sua melancolia com uma imbatível alegria de viver. 

Esquecem, no entanto, que apesar do que dizem os filmes e os clássicos ideais machistas, nós somos as protagonistas de nossas próprias vidas.

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Não estamos aqui para te salvar, colega.


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