Esquadrão Suicida: Um Retrocesso na Representação Feminina na Cultura Pop
Em 2016, um filme que desrespeita mulheres verbalmente e fisicamente arrecada milhões de bilheteria e ainda tem gente que não acha nada de errado com isso.
Eu queria muito que Esquadrão Suicida fosse bom. Muito! Curto os heróis da DC, o universo do Batman me fascina e atores que eu gosto estavam escalados pra papéis de premissas muito interessantes. Mas o primeiro pensamento que me ocorreu ao fim do filme foi: QUE BOMBA. E sim, o roteiro é ruim, a edição é uma bagunça e tem um monte de coisa tecnicamente errada. Mas o que mais me incomodou foi como o filme trata as personagens femininas. Principalmente, a queridinha de muitos fãs de quadrinhos, a Arlequina.
Pra quem não sabe, Harley Quinn é uma personagem do universo do Batman, criada em 1992 (por quadrinistas homens) e é conhecida principalmente por ser a namorada do Coringa, que por sua vez é um dos vilões mais famosos das histórias do homem-morcego. A história de “amor” entre o Coringa e a Arlequina já é bem problemática nos quadrinhos. Nas revistas, a Dra. Harleen Quinzel é uma psiquiatra no manicômio Arkham, e durante as sessões com o Coringa acaba sendo “seduzida” por ele. Apaixonada, a Dra. Harleen ajuda o vilão escapar de Arkham diversas vezes. Segundo a história original, a loucura de Harley começa quando ela vê o “namorado” seriamente ferido após uma briga com o Batman, rouba uma fantasia de arlequim, invade o hospício e finalmente se torna Harley. No filme, a origem da personagem se dá por uma, veja só, sessão de tortura com choques elétricos com o palhaço de Gotham.
Nos quadrinhos, Harley vive um relacionamento abusivo recheado de assédio com o Coringa. Ela apanha, é humilhada na frente dos capangas do vilão, e continua trabalhando para ele e atuando no mundo do crime para “mostrar o seu valor”. Ou seja: Harley só é o que é por conta de um homem, só faz as coisas por conta dele e em favor dele. Na versão impressa, Arlequina chega a formar uma aliança com Hera Venenosa e com a Mulher Gato e até chega a planejar uma vingança contra o seu assediador com as amigas – olhaí, uma história de sororidade. “Mas esses personagens não estão sendo adaptados aqui”, dirão os fanboys. Ah sim. Claro. Mas interagir com as outras mulheres da mesma maneira seria um absurdo mesmo, né?
No filme, o coringa, além da tortura inicial, faz mais um monte de outras maldades com Harley, que vão desde humilhação constante até oferecê-la pra outros homens. E o pior é que em nenhum momento Harley reage de maneira a combater seu assediador. Na verdade, ela passa o filme inteiro tentando voltar pra ele. Que tipo de mensagem é essa para as mulheres que sofrem assédio?
Na adaptação cinematográfica, Harley ainda sofre violência real e verbal de outros homens, e é objetificada durante o filme inteiro. Como pontua o crítico Pablo Vilaça “[…]a última vez em que vi a bunda de uma atriz receber mais destaque do que a de Margot Robbie em uma superprodução, o diretor se chamava Michael Bay”. A película até recorre pra recursos absurdos, tipo: chuva, quando a personagem está usando uma camiseta branca. Em um momento, um personagem masculino fala na cara dela que ela é linda por fora, mas feia por dentro. Nessa hora, os roteiristas têm uma chance de jogar uma “problematizaçãozinha” na fala da personagem, quem sabe colocá-la numa posição melhor, mas não o fazem.
Na caracterização cinematográfica, Harley usa uma coleira (sim!) com o apelido que deu para o seu amado, veste uma camiseta que diz “Daddy’s little monster” (monstrinha do papai), e ainda aparece com uma jaqueta onde se lê “propriedade do Coringa”. Tudo gritando pra mostrar que ela é uma propriedade do seu assediador.
“Mas eles estão apenas adaptando o que acontece nos quadrinhos”, dirão os machistas fanboys. Vamos pensar que é 2016, o feminismo é um dos assuntos mais buscados nos últimos dois anos, a representação feminina na cultura pop evoluiu muito. Imagine que legal seria se a Harley do cinema na verdade mandasse no Coringa. Se ela usasse uma camiseta que diz “I own the Joker”. Ou melhor, se essa versão da personagem já nem tivesse mais contato com o seu assediador e tivesse outras motivações? Que personagem feminino incrível teríamos no mundo dominado pelo machismo dos super-heróis.
Daria pra escrever um texto inteiro só sobre o retrato de Harley Quinn e tudo que está errado com ele, mas as outras mulheres da trama são igualmente destratadas durante toda a extensão da produção. Não é muito difícil de entender esse comportamento uma vez que: a direção e roteiro são assinados por um homem; entre os 10 produtores e produtores executivos, apenas uma é mulher; e observando o resto da ficha técnica do filme, pouquíssimos nomes femininos aparecem.
A única personagem asiática, Katana (Karen Fukuhara) entra na trama muito depois e tem um flashback mais curto (e muito menos compreensível) para “explicar sua história”. Ela usa uma espada samurai como ninguém, mas a única coisa que aprendemos sobre as suas motivações é que ela quer vingar a morte do marido. Ou seja.
A Magia de Cara DelaVigne teoricamente é uma das principais personagens da trama e poderosíssima. Mas para as principais ações, ela invoca um irmão que acaba assumindo o protagonismo em vários momentos e não faz nada sozinha.
A personagem de Viola Davis, Amanda Waller, é a responsável por montar o time do Esquadrão Suicida. Por ser uma mulher “a frente da operação”, ela é a que menos sofre com o machismo do filme, mas mesmo assim, tem que escutar piadinhas machistas em diversos momentos de chefia. Também não conhecemos nenhuma história que explique suas motivações ou qualquer detalhe que construa a personagem. Mas como Viola Davis é Viola Davis, ela consegue brilhar.
Até em âmbitos mais básicos de representação feminina, Bechdel passa longe. Quando Waller precisa falar com Magia, muitas vezes ela se dirige ao soldado Flag e não tem um diálogo direto com a personagem. E em uma das sequências finais, Magia tem um diálogo com Harley e advinha sobre o que elas estão falando? Macho!
No ano que temos a nova versão de Caça-Fantasmas, e que está dominado por personagens femininas interessantes e bem construídas nos cinemas, fica difícil engolir obras como Esquadrão Suicida.
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Carol
August 13, 2016 @ 7:04 pm
Perfeito! Não tem nada certo nessa filme, pelamor.
alice
August 22, 2016 @ 3:28 pm
e meu filho de 9 anos queria ver esse filme. ainda bem que não levei.
Danilo
December 18, 2016 @ 4:26 am
Mariana, concordo completamente que vemos a personagem no filme como abusada e manipulada, mas não se trata apenas de adaptar o que está nos quadrinhos, mas sim de ser verossímil com a personagem, como vc mesma disse, colocar uma Arlequina forte e que não fosse manipulada no filme seria incrível, ousado, mas não seria condizente com as características da personagem. Não é porque o filme mostra um relacionamento abusivo, que isso seja negativo, pelo contrário, ele pode estar na verdade problematizando, pois pela sua premissa qualquer filme que conte a história da escravidão consequentemente estará sendo racista. Estamos lidando com a realidade aqui, por pior que ela seja, e a personagem Arlequina sofre com seu relacionamento, não adianta tentar aliviar e mostrar ela se livrando disso do dia para a noite, pois sua mente está bagunçada, ela foi muito manipulada pelo Coringa e isso não some num passe de mágica. Logo, é necessário sim mostrar esse relacionamento abusivo nas telas, justamente para que as pessoas vejam e se questionem, problematizem a situação, critiquem.
Renato
April 10, 2017 @ 3:51 am
Parabéns pelo texto!
Realmente entre tantas falhas gritantes no roteiro desse filme, deixarem o arco da Harley em aberto é lamentável. Era algo que tinha que ser resolvido ali, mostrar a personagem superando o Coringa e crescendo, mas infelizmente terminou da pior maneira possível.