Nunca Fiquei Bem de Biquíni – e o que isso quer dizer sobre mim
Como eu descobri que as dobras da minha barriga não têm a mínima importância perto de todo o universo que eu tenho dentro de mim para oferecer.
Quando eu era criança, sempre era a mais cheinha da turma. Apelidos de baleia e sua variante – baleia assassina – abundavam. Era uma época em que “mimimi” nenhum era escutado, então quando fui reclamar em casa sobre o tal tratamento, me disseram que era para levantar o nariz e saber que era “esbelta”.
Na minha cabeça, “esbelta” era igual a “gordinha”. E “gordinha”, igual a “feia”.
Não se esperava, naquela época, que os pais fossem ao colégio falar com as professoras sobre “coisas normais” da infância, pelas quais “todas as crianças passam”. Assim, fiquei apenas com a defesa na minha cabeça, o que não impediu que o apelido continuasse.
Quando troquei de colégio e vim morar no interior, a agressão escalou, e eu passei a sofrer bullying com todas as suas nuances: isolamento, depreciação, sentimento de culpa e de inferioridade, cumplicidade dos professores e demais adultos. Sofri bullying por mais de 7 anos – e levou muito mais do que o dobro disso para quebrar o estigma e apagar as cicatrizes deixadas por este período.
Existia um lugar, contudo, em que nada disso acontecia. Naquela época, tínhamos uma casa na praia, para onde rumávamos todos os verões. Lá, eu não era gordinha, nem sofria bullying. Lá eu tinha amigos que gostavam de mim, e com quem eu ia descobrindo as coisas da infância e da adolescência.
Molecas, vivíamos de biquíni explorando todas as ruas da região, caçando girinos, procurando mariscos, surfando de morey boggie (alguém lembra?). Na adolescência, as primeiras festinhas, virar a noite e voltar a pé pela beira do mar.
Tudo isso, do jeito que eu era: sempre mais cheinha que as minhas amigas. Colocava um biquíni, me olhava o espelho, e via que eu não era o modelo de beleza universal. Mesmo assim, seguia firme: na praia, éramos livres. Era um espaço democrático onde os corpos todos eram aceitos. Pequenos comentários, contudo, abalavam a confiança da menina já àquela época, e questionavam se eu era boa o suficiente, por ser mais cheinha.
A infância e adolescência foi ficando para trás, e os quilos foram se somando. A cada verão, era uma nova descoberta: o biquíni pequeno do verão passado já não ficava mais tão bem. Meus seios cresceram, e já não cabiam nas cortininhas.
Em dado momento, passou a ser bastante complicado comprar um biquíni. O biquíni que era grande suficiente para o peito era feito para uma senhora ir à praia. O que tinha as estampas da minha idade era minúsculo. Comecei a perceber que algumas marcas bem famosas, que saiam nas revistas de moda e afins, nem fabricavam biquínis do meu tamanho (esta talvez tenha sido a descoberta mais dolorosa. Era quase como se eu não existisse novamente).
Mesmo assim, me adaptando ao que conseguia achar nas gôndolas, acabava comprando um biquíni aqui, outro ali. Os biquínis foram ficando cada vez mais caros, porque cada vez mais raros, e cada vez maiores. Mesmo assim, com a lembrança indelével daquela infância e adolescência livres na beira da praia, nunca deixei de usá-los.
Com a chegada das redes sociais, começaram a aparecer os relatos anônimos de todo o tipo de gente – como o do menino, numa comunidade do Orkut, que dizia empregar o teste da praia com as candidatas a namorada. Se aceitassem, passariam. Caso recusassem, era denúncia de que eram falsas magras. Ou, na visão dele, gordas.
E gordas era igual a feias.
Li aquilo um tanto estarrecida e olhei para o meu corpo. Àquela altura, minha vergonha das dobras da barriga já tinha se estabelecido: só ia à praia de camiseta, tirava no momento do banho e logo a colocava novamente.
Confiança zero. Contudo, continuava usando biquíni. E me achando gorda.
Um dia, num evento corporativo em um resort, uma colega se recusou a entrar na piscina. O calor era intenso, mas a vergonha do corpo era ainda maior. Comecei a perceber que havia muito mais do que lycra relacionado a um biquíni: havia auto aceitação, havia discriminação, havia autoestima, havia gordofobia.
Por mais que eu e outras pessoas mais cheinhas estivéssemos na água, para ela não era possível fazer o tchibum. Achava-se gorda. E gorda é igual a feia. Era uma menina com uma voz incrível, dessas que vão no Raul Gil e embasbacam todo mundo, e também tinha uma cultura fenomenal. Cabelo preto, grosso, brilhante, boca cheia e a pele negra, cor de jambo: uma moça lindíssima de todos os ângulos vistos.
Mas não usava biquíni. E também não entrava na piscina. E nem no mar. Por se achar gorda.
Um dia decidi desistir da saga em busca de um biquíni que se adequasse ao meu corpo – entrei numa Marisa da vida com uma amiga, e fui provar maiôs. Minha lógica era: se eu cobrir a barriga, ela não aparece tanto. E eu pareço mais magra. E magra é igual a bonita.
Mal sabia eu que os maiôs também tinham duas classes: moças magras ou senhoras. Não havia um maiô para mim, moça mais cheinha. Os que tinham o modelo mais jovem traziam recortes de todos os lados: expondo justamente as partes que eu queria esconder.
Comecei a chorar no provador da Marisa. Minha amiga ouviu e veio ver o que acontecia. Eu simplesmente disse: eu amo o mar, mas não sei mais o que usar. Em tudo eu fico feia.
E ela, que para mim era uma moça lindíssima, me disse: eu também me sinto assim. Biquíni ou maiô, não importa, eu me sinto gorda. E gorda é igual a feia.
Ficamos ali, olhando uma para a outra, formando aquela corrente de empatia mágica que une os amigos que se entendem. Foi naquele momento que decidi enfrentar meu passado e mandar tudo às favas.
Quando cheguei em casa, peguei meus álbuns antigos e comecei a ver minhas fotos dos verões passados. Todos aqueles verões em que eu tinha usado camiseta, ou que rumava ao mar meio desconfiada, pouco confiante. Todos aqueles verões em que eu escutava minhas amigas sendo elogiadas na beira da praia, sendo admiradas, sendo disputadas. Todos aqueles verões em que a confiança era zero, mas que eu enfrentava mesmo assim os milhares de olhares sob a gorda de biquíni indo para o mar.
Olhei para mim mesma, de biquíni. Há 5, 10, 15 anos atrás daquele dia. Em anos em que eu estava 5, 10 ou 15kg mais magra do que naquele dia. Procurei todas as fotos que me lembrava, revirei álbuns, caixas, arquivos do computador.
E fiquei pasma.
Não importava a data: em todas as fotos eu não era gorda. Eu apenas me via gorda. E não que ser gorda seja grande coisa não – é coisa que menos me importa nesta discussão – mas fiquei pasma por ver como um quilo a mais do que a minha colega de aula, ou do que a minha vizinha da praia, era o suficiente para me tachar (na minha própria cabeça) a pecha de “gorda”.
Há quinze anos atrás, quinze quilos mais magra, e eu já me sentia inadequada de biquíni.
Um quilo a mais foi o suficiente para acabar com a minha autoestima por anos, por me fazer pensar que todos esses anos eu não era “normal” ou “ bonita” ou “atraente”. Um quilo a mais foi suficiente para eu PENSAR que havia ALGUMA pessoa olhando para mim enquanto eu ia até o mar – como se o mundo não tivesse outra coisa a fazer a não ser olhar para essa que vos escreve.
Não houve momento na minha vida em que eu tivesse usado um biquíni sem ter plena consciência de que talvez fosse melhor usar um maiô e cobrir mais o corpo – mesmo quando eu estava no início da vida adulta e pesava 15kg a menos do que hoje!
Com minha filha hoje em dia, curtindo agora as praias do sudeste asiático.
De uma certa forma, foi como se eu houvesse descoberto em mim um distúrbio alimentar: a imagem que eu via no espelho não correspondia à realidade.
(Ouvindo minhas amigas, e olhando para elas, tenho às vezes a impressão de uma histeria coletiva – como se todas nós vivêssemos em eterno distúrbio, com eterna distorção da imagem à nossa frente. Um eterno olhar para o mundo através de lentes de vidro grosso, distorcendo a realidade e moldando-a ao bel prazer de algum ser supremo que detém a fórmula do padrão de beleza.)
Neste dia, olhando as minhas fotos, pude compreender uma coisa muito importante: a construção da estima se deu nas pequenas coisas, como ser ou não “esbelta”, como ser ou não aceita, como ser ou não eu mesma.
Foi a primeira reconstrução.
Perceber que eu havia passado uma vida inteira me sentindo inadequada, e procurando me encaixar, querendo tanto participar daquela coisa linda que era a praia – mas nunca mesmo conseguindo me sentar lá relaxada. Sempre preocupada com as dobras da barriga, bem mais importantes – na minha cabeça – do que todo o universo que eu tinha dentro de mim para oferecer.
Deste momento em diante, passei a dizer “dane-se” mais vezes. Não foi o único, mas talvez tenha sido um dos elementos que permitiu a entrada de uma pessoa na minha vida, que me entendeu, que eu entendi, e com quem eu formei família. Eu falei “dane-se” pro mundo, e ele parece ter adorado.
Estou ainda em processo. Ainda preciso desconstruir o “gorda é igual a feia” dentro de mim –o apelido de infância marcou mais profundamente as minhas convicções do que os anos de análise.
Hoje em dia, contudo, sento na beira da praia, para brincar com a minha filha, fazer seus castelos e túneis e estradas, e nem percebo que, no processo, a barriga se dobra e se desdobra.
É tanto amor acontecendo ali, naquele momento de construção de uma estima nova, que não tem espaço para consciências e pudores e padrões.
Saiba mais sobre o ano sabático da Cris e sua família pelas praias da Ásia e outros cantos em Cuore Curioso.
Júlia
April 13, 2016 @ 11:41 pm
Eu AMEI isso.