Como um Beco de NY Mostrou a Importância da Produção de Conteúdo Nacional (e o que a série PSI da HBO tem com isso)
Cinco anos depois da Lei da Tv Paga, que estabelece um tempo mínimo de conteúdo nacional nos canais de TV fechados no Brasil, ainda é preciso refletir sobre a necessidade da produção de conteúdos nacionais nos meios de comunicação do país.
Certo dia, ao girar os canais, me interessei por uma cena aleatória. Reconheci com uma piscadela o local das filmagens e afirmei para a minha mãe, que estava ao meu lado no sofá: “olha mãe, é um beco de Nova York”. Ela pareceu surpresa e me perguntou como eu sabia, já que eu nunca estive na grande maçã. A resposta era simples: “eu já assisti a muitas séries e filmes que foram gravados lá”. No momento, não pensei muito sobre o assunto; só achei interessante o fato de estar tão familiarizada – até com um beco – de uma cidade que eu jamais visitei.
Sou uma daquelas pessoas que passou um grande tempo da vida assistindo séries. No entanto, é realmente desesperador pensar em quantas dessas produções foram brasileiras. Me vem à mente apenas duas maravilhosas obras primas exibidas pela TV Globo: Hoje é Dia de Maria e Capitu. E, mais alguma outra que assisti na MTV Brasil, como Descolados.
Cena de Capitu, minissérie brasileira produzida pela Rede Globo, exibida entre 9 e 13 de dezembro de 2008, com 5 capítulos.
Por outro lado, é fato que as produções seriadas só começaram a ter um grande destaque no Brasil nos últimos cinco anos, impulsionadas, em parte, pelas plataformas de streaming online que atingem o público que não pode/não quer pagar por TV a cabo.
A Lei da TV Paga e a Quota de Conteúdo Nacional
Contudo, depois da conhecida Lei da TV Paga (Lei 12.485) sancionada em 2011, os canais a cabo do Brasil passaram a ter a obrigação de exibir uma quota de conteúdo nacional em seu horário nobre semanal. A regra vale para os chamados “canais qualificados” – os que exibem prioritariamente filmes, séries, documentários e animações.
Com isso, de 2010 a 2013 a veiculação de conteúdos nacionais se elevou em 385% com a criação de nada menos que 300 novas séries ficcionais e documentais, segundo estimativas do setor. Somando a isso a própria vontade dos canais fechados de ficar mais próximos do público brasileiro mesmo antes da obrigação legal de criar conteúdo nacional, o déficit de produções verde e amarelas de qualidade no nosso dia-a-dia pôde finalmente começar a ser minimizado.
No entanto, as emissoras tinham preocupações e elas giravam, principalmente, em torno de questões como o receio que o conteúdo nacional não atingisse a qualidade necessária e que não gerasse interesse do público. Assim, na época da promulgação da referida lei houve severas críticas a essa obrigação legal de veicular um conteúdo específico. Sem falar que o mercado brasileiro carecia da quantidade necessária de profissionais qualificados como roteiristas.
Porém, em 2013, quando a quota total passou a valer, cinco das dez maiores audiências da TV por assinatura brasileira foram séries brasileiras. Isso fez com que aquelas preocupações fossem abrandadas. Naquele ano, a líder do TOP 10 em audiência, a comédia Vai Que Cola (Multishow), chegou a ter mais do que o dobro da audiência de títulos internacionais de peso como The Walking Dead.
A demanda brasileira
Esse impressionante resultado em tão pouco tempo evidenciou uma necessidade: o público brasileiro ansiava/ansia por produções em que pode se enxergar e assistir os becos de suas próprias ruelas – ou seja, consumir histórias que refletem a sua realidade com personagens críveis e uma qualidade comparável às produções gringas. Claro que é interessante viajar sem sair de casa e conhecer o mundo, mas só ter acesso a produções de outra realidade não é realmente ter um poder de escolha mais livre do que se consome.
Com isso, em 2015, quatro anos depois da quota da Lei da TV Paga entrar em vigor, houve um boom das produções nacionais nos canais de televisão fechados. E mesmo no ano anterior, 2014, grande parte dos canais tinha superado o previsto em lei de 3h30 semanais, como a HBO (5h41), TNT (4h55), Sony (6h08) e Warner Channel (4h22). [dados da Ancine].
Lili, a Ex é uma série de televisão nacional, produzida pelo GNT, baseada na tira de quadrinhos de mesmo nome de Caco Galhardo, teve autoria de Erez Milgron e Lilian Amarante.
Em entrevista para o UOL, a produtora Andréa Barata Ribeiro comenta que: “Esse foi um momento histórico para a cena independente brasileira. Pela primeira vez, temos uma chance real de fazer coisas para a televisão. Acho que isso só traz benefício ao mercado e ao consumidor, pois os produtores, criadores e diretores independentes passam a contribuir e a arejar o mercado”. O aumento da demanda por produções independentes também está ligada a Lei da TV Paga, que estabeleceu que metade da quota de conteúdo nacional deveria ser produzida por produtoras independentes.
Como todos sabem, o Brasil tem uma tradição nas telenovelas na TV aberta, porém com as novas demandas do público nacional, o consumo de produções estrangeiras – sobretudo norte-americanas – veio crescendo. Assim como o acesso a TV por assinatura e a uma internet com a banda necessária para consumir conteúdos em vídeo. Esse aumento das produções nacionais incrementado pela lei e pela demanda reflete esse cenário.
Atualmente há discussões sobre a necessidade de aplicar uma legislação similar às plataformas de streaming. As empresas de TV Paga querem obrigar as plataformas como Netflix e HBO Go a oferecer 20% do seu catálogo de conteúdo nacional. Porém, isso vem se mostrando complicado, pois a maior produtora de nosso país, o Grupo Globo, não cede os direitos de suas produções para concorrentes. Além disso, poderia ocorrer de as produtoras independentes menores que fechassem parceria com a Netflix, por exemplo, fossem boicotadas pelos canais do grupo Globo. Ou seja, há muito a ser discutido sobre essa possível regulamentação.
Em 2015 a Netflix possuía 3.998 títulos, dentre eles 189 eram produções nacionais e mais de 68 títulos eram relacionados a músicas brasileiras. Com uma regra que, por exemplo, estabeleça uma cota de 30% de conteúdo nacional (semelhante a Lei da TV Paga), pelo menos 1.199 destes vídeos deveriam ser brasileiros.
Por que conteúdo nacional é importante?
Todas essas reflexões comecei a ter quando perguntei no Twitter se alguém poderia me indicar uma série nova para assistir. A indicação veio tímida: “tem uma brasileira que eu assisto, não sei se você curte…”. Foi assim que me recomendaram assistir PSI, uma produção da HBO Latin American Originals, em parceria com as produtoras independentes Biônica Filmes e Damasco Filmes. Pela rápida descrição que me forneceram em 140 caracteres, parecia ser muito interessante e valer o esforço de assistir ao piloto.
Desde 2004 a HBO Brasil estava apostando no mercado brasileiro e produzindo séries nacionais, como a tão bem recebida Mandrake e outras, como Filhos do Carnaval, Alice, Mulher de Fases e O Negócio. Essas produções são exibidas com legendas em espanhol para toda a América Latina e são conhecidas por lançarem novos talentos no mercado.
Antes de falar sobre PSI, esclareço o por que expliquei um pouco sobre a situação do audiovisual brasileiro. Ao assistir uma obra brasileira gravada na cidade de São Paulo, nas ruas por onde já andei, nos lugares que já visitei, com personagens que eu poderia facilmente ter conhecido, eu tive uma confirmação do que eu já sabia, mas não tinha até então vivenciado: a importância de conteúdos feitos por brasileiros e para brasileiros para a formação da identidade nacional.
O complexo de vira-lata que muitas vezes os brasileiros são acusados de ter é proporcional à quantidade de conteúdo estrangeiro (lê-se norte-americano, no geral) que é consumido. Basta lembrar da recente aversão à apresentação musical da cantora e compositora Anitta na abertura dos jogos olímpicos.
Tudo que é feito em terras tupiniquins parece ter menos valor aos olhos brasileiros – e se for de um estilo periférico, como o funk, o cenário fica pior ainda. Ao mesmo tempo, somos bombardeados por patriotismo americano e enaltecimento daquele way of life.
A série PSI da HBO Latin American Originals
Pensando em tudo isso, qual não foi a minha alegria ao assistir a uma produção com uma narrativa audiovisual densa, tratando de temas delicados (mas muito necessários), com uma dinâmica de imagem mais lenta e poética e um roteiro com assuntos complexos, apresentados de forma a ser entendidos com uma sensibilidade teórica (até didática) e artística muito bem pensada?! E tudo isso se passando na minha cidade natal, ainda por cima! Parecia bom demais para ser verdade, mas era real.
Em PSI acompanhamos a vida pessoal e profissional de Carlo Antonini (Emilio de Mello), um psiquiatra, doutor em psicologia clínica e psicanalista que acredita que as patologias do ser humano são o que tornam as pessoas interessantes e que a normalidade é sem graça. Com isso, o Dr. Antonini se interessa pelos casos mais desviantes que aparecem no seu consultório, nos levando a conhecer as mais diferentes histórias que a cidade da garoa pode oferecer.
Mas mesmo que essa atração pelo desviante o transforme em uma espécie de Dr. House da psicologia, a série vai além do que é tratado em consultório e explora a vivência de Carlo e seus círculos pessoais, como sua relação com a ex-mulher Flávia (Aida Leiner) e seus dois enteados Henrique (Igor Armucho) e Marina (Bianca Vedovato); seu filho de outro casamento, Mark (Victor Mendes); sua afinidade com sua amiga, conselheira e vizinha de consultório Valentina (Claudia Ohana); e seus amigos próximos: o coveiro Severino (Raul Barreto) e o delegado Roberto (Otávio Martins).
Cláudia Ohana (Valentina) e Emilio de Mello (Carlo)
Automutilação, sadomasoquismo, pedofilia, vampirismo, homofobia, HIV positivo são alguns dos temas tratados na primeira temporada, em que Carlo sofre uma crise em sua profissão e a cada dia fica mais desinteressado pelos pacientes mais “comuns”. Já na segunda temporada o foco é a violência em seus mais variados sentidos. Depois de voltar renovado de uma longa temporada na Itália, Carlo abre uma ONG junto com Valentina chamada O Abrigo, que acolhe vítimas de violência doméstica. Temas como prostituição adolescente, estupro, exorcismo, segurança pública e suicídio são abordados nessa temporada.
O que mais me impressionou nessa série é a sensibilidade ao tratar de temas urgentes da nossa sociedade brasileira. No episódio “Eu quero ser quem eu sou”, por exemplo, a luta transexual é abordada conforme acompanhamos a história de um homem trans na justiça para ter seu nome social reconhecido, assim como da promotora de justiça que está em seu caso. No mesmo episódio, também há a temática da solidão da mulher transexual, denunciando como o direito de ser amada lhes é negado até por quem afirma simpatizar por sua causa. Temas como esse são urgentes em serem representados nos meios de comunicação; a leitura feita por produções estrangeiras não é suficiente para a nossa realidade.
O personagem Carlo Antonini é o protagonista de dois livros: Um Conto de Amor e A Mulher de Vermelho e Branco. A história de PSI se passa depois dessas duas obras literárias que foram escritas por Condarto Calligaris, escritor, psicanalista e dramaturgo italiano radicado no Brasil e diretor-geral da produção. Juntamente com ele, estava Thiago Dottori, também psicanalista, que foi o responsável pelas cerca de 750 páginas dos roteiros dos 13 episódios da primeira temporada. Ao todo foram contratados 240 atores (sem contar os figurantes), e locados por volta de 100 lugares na capital paulistana para rodar as cenas da primeira temporada.
Condarto Calligaris e Emilio de Mello
A segunda temporada (exibida em 2015) alcançou a merecida indicação ao Emmy Internacional, concorrendo na categoria de melhor série dramática e na de melhor ator para Emilio de Mello. E não era para menos. Embora Calligaris continuasse como diretor-geral, houve outros diretores convidados como Laís Bodansky (premiada pelo filme “Bicho de Sete Cabeças”), Alex Gabassi (diretor de “O Hipnotizador”), Tata Amaral (diretora dos premiados longas-metragens “Hoje” e “Antonia”), e Rodrigo Meirelles (diretor da série “A Vaga”).
Em cada episódio é dada ao diretor escolhido a liberdade de transmitir seu olhar para a história, fato que proporciona diferentes dinâmicas para cada episódio. O episódio ‘Reféns’, por exemplo, apresenta tons tarantinescos ao retratar Carlo preso no meio de uma rebelião em um presídio feminino. A unidade da série vem do restante da equipe, que cuida da trilha sonora, figurino, direção de arte- ou seja, que “deixa a série com a cara da série” – segundo Rodrigo Meirelles.
O ator principal, Emílio de Mello, explicou em entrevista para o site ZH Entretenimento que o rigor da equipe cuida de palavra por palavra para que o roteiro fiquei plausível tanto para a comunidade médica, quanto para o público geral. Parece que todo esse cuidado tem dado certo, já que a série foi renovada para uma terceira temporada, prevista para ir ao ar em 2017.
Um destaque especial deve ser dado para a atriz Claudia Ohana, que interpreta a personagem Valentina na série, ainda que atriz tenha admitido que o papel não foi dos mais fáceis. “Você precisa estudar muito, porque são textos muito difíceis, para fazer aquele texto virar seu como se estivesse falando de arroz e feijão”, disse ela em entrevista para O Diário de Pernambuco, durante 10ª Bienal Internacional do Livro de Pernambuco.
A personagem é apaixonante: ex-streaper, ela é formada em medicina e foi aluna de Carlo durante sua especialização em Psicologia Clínica (e teve com ele um caso de curta duração na época). Depois de uma temporada trabalhando para os Médicos Sem Fronteiras no continente africano, ela volta ao Brasil para clinicar no consultório vizinho ao do amigo. Valentina conhece Carlo há muito tempo e é uma confidente e parceira de aventuras em muitas cenas, ajudando-o muitas vezes a enxergar coisas que ele próprio não conseguiria.
Finalmentes
PSI da HBO não se utilizou de financiamento público previsto pela Lei da TV Paga. Isso mostra que mesmo sem o incentivo governamental o mercado brasileiro de produções audiovisuais tem todo o potencial para produzir conteúdo de qualidade que retrate a realidade brasileira com um olhar apurado.
Além da importância interna de se ter conteúdo que represente a realidade brasileira, é também um ganho o Brasil poder contar sua própria história para países estrangeiros. Não é preciso assistir muitos filmes ou séries estrangeiras que tratem mesmo que de leve de assuntos sobre o Brasil para perceber como somos retratados de forma equivocada. A segunda temporada de PSI foi exibida simultaneamente em 23 países da América Latina e ainda será veiculada nos Estados Unidos.
Na França, 40% do conteúdo na rádio, TV e filmes em cinemas precisam ter origem francesa, e pelo menos 50% devem ser origem europeia. Outros países seguem legislações parecidas, que priorizam as suas próprias produções. Isso mostra que a quota de conteúdo nacional nos meios tradicionais – e, num futuro próximo, nas plataformas de streaming (que está em estudo no Brasil) – não é nada fora da realidade.
Contudo, nem tudo são flores e apesar de produções nacionais de qualidade estarem sendo feitas, falta muito para que todas as produções atinjam esse patamar.
Enquanto o Brasil caminha para ter um mercado de produções audiovisuais forte e estruturado, você pode conferir uma lista de títulos da HBO com jeitinho brasileiro aqui.
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