Onde você esconde o seu racismo? Porta dos Fundos e o token nosso de cada dia
Sejamos francos. Há uma necessidade urgente de cada pessoa branca fazer uma autocrítica e perguntar a si mesmo: onde eu escondo o meu racismo?
No vocabulário técnico das práticas racistas e machistas, chamamos de TOKEN quando uma pessoa acusada de ser opressora usa pessoas de suas relações sociais que pertence as ditas minorias para se defender e justificar sua atitude ofensiva e preconceituosa.
O grupo de humoristas do programa Porta dos Fundos, exemplificou isso de maneira brilhante e ousada, no vídeo intitulado “Amiguinho” onde um casal que mantém filho em escola particular vai questionar a direção da escola sobre a expulsão de um aluno negro. Eles imploram para que a diretora mantenha o aluno negro, porque sem esse aluno eles não teriam como se desviar das acusações de racismo.
Grande sacada. Não é a primeira vez que o programa esboça críticas sociais desse nível, eu por acaso já vi mais dois vídeos sobre a questão, um deles que descreve uma excursão na favela e outro que fala da questão da dificuldade de se dizer a palavra ‘negro’.
Esses vídeos, embora explorem de maneira bem humorada questões sérias para discussões sobre racismo, desperta questionamentos que casam com a fama da democracia racial que nosso país ostentava antes dos apontamentos da ONU, que visitou o Brasil em dezembro de 2013.
É justamente esse mito que representa o grande entrave na luta contra o racismo institucionalizado, pois seus efeitos são bastante convincentes no senso comum da sociedade. Para quem vê o vídeo humorístico entre outras manifestações de pessoas brancas em outras mídias (como o #somostodoshumanos por exemplo), inevitavelmente acredita nas eficácias das boas intenções e a impressão que fica é que todos estão lutando juntos pela igualdade de oportunidades para as raças estruturais que ocupam nosso país.
Mas, olhando de perto, facilmente se destrói esse pensamento. Apesar do bem intencionado programa expor uma situação típica de tokenização, faltou a crítica de suas próprias práticas e condutas. Ora, se uma turma de brancos jovens, talentosos e intelectualizados o suficiente para captar a sutileza dessa prática racista e retratá-la de maneira consciente, porque a mesma precisão de raciocínio não se volta para o fato de que no seu elenco não há pessoas negras?
Temos aí uma segunda situação de tokenização, só que dessa vez inconsciente até certo ponto, pois apesar de assertiva, a crítica racial não vem acompanhada de um mea culpa capaz de identificar que embora os roteiristas sejam supostamente contra a situação exposta, não caminham em direção a solução da situação de racismo.
Ou seja, racismo é ruim quando é com os outros, comigo é naturalizado a ponto de eu nunca ter notado que não há representatividade negra no meu programa.
Isso é bem costumeiro na rotina das relações sociais entre negros e brancos no Brasil. Temos um contingente de cerca de 90% de pessoas que afirmam que racismo existe e que já presenciaram situações de racismo contra 92% de pessoas que se afirmam não racistas. Essa discrepância entre discurso e realidade é resultante da falta de crítica da pessoa branca, que grosso modo, não se inclui no conjunto de práticas que fomentam o racismo. Ela na verdade nem cogita o fato de que pode (e é!) racista.
Também devemos considerar a total falta de interesse por parte das pessoas brancas em estudar a fundo o que de fato é o racismo.
Sendo assim, não sabem exatamente do que se trata em termos teóricos, prioritariamente reduzem a uma simples expressão de preconceito e acham que conviver com pessoas negras de maneira aceitável o exclui do conjunto de práticas que constituem a institucionalização do racismo.
Pergunte a uma pessoa branca, quantos autores negros ela já leu, em quantos eventos que discutem essas questões com seriedade ela já participou, entre outras coisas que pessoas negras promovem e a resposta não virá, porque não fazem isso.
Pergunte a uma pessoa branca, quais são os reais problemas que a população negra sofre e como lidam com as inúmeras limitações que enfrentam no seu cotidiano e ela não saberá. Peça para uma pessoa branca identificar uma situação de racismo, daquelas extremamente sutis que só quem convive com a sua pele negra desde o nascimento reconhece, e ela não vai passar do lugar comum.
Mas sejamos francos, há uma necessidade urgente de cada pessoa branca fazer uma autocrítica e perguntar a si mesmo:
Onde eu escondo o MEU RACISMO?
Porque vivendo em uma sociedade estruturada pelo sistema de poder onde um grupo está acima do outro e um dos determinantes que estabelece essas relações é o fator raça, é mais do que óbvio que dificilmente alguma pessoa branca consegue escapar. Todos são racistas, em escalas diferenciadas, guardadas as devidas desconstruções a que alguns se permitem, mas à medida que usufruem livremente dos privilégios que esse sistema de poder lhes garante já está automaticamente enquadrado na estrutura racial que oprime pessoas em função da manutenção desses privilégios.
É necessário que as pessoas brancas olhem para as suas vidas com honestidade e não apenas reconheça seus privilégios, mas trabalhe para que dentro do meio onde se relacionam socialmente, essas distâncias sejam eliminadas. Os avanços na questão racial são ínfimos, apesar de estarmos exatamente há 127 anos do pós-abolição. Tivemos um hiato de quase um século e meio e as distâncias entre negros e brancos são abismais.
O racismo, como bem observou a ONU, é institucionalizado. Ele está nos hospitais, nas escolas, na mídia, nas rodas de conversa, nas bibliotecas, nos centros de consumo, nas relações afetivas, nas relações familiares, em toda parte. Ele está lá naturalizado e é preciso que se diga o óbvio: não estamos falando de uma entidade autônoma que se mantém à revelia das dinâmicas sociais e sim de um conjunto de práticas onde pessoas brancas são protagonistas ativas e/ou passivas.
Mas em todos os lugares onde o assunto racismo é abordado, há sempre uma pessoa branca usando a presença de pessoas negras em suas vidas como passaporte para a absolvição do posto de racista.
No Brasil, ser racista é considerado abominável pelo senso comum justamente pela ignorância que a sociedade mantém sobre o assunto. Essa ignorância vem da recusa em não se aprofundar no assunto, que por sua vez vem da falta de importância dada ao assunto. E não é importante para quem não é atingido diariamente por ele. É esse o maior cinismo do racista brasileiro: achar o racismo insuportável, mas nadar no raso quando a oportunidade de se mudar a situação é apontada por pessoas negras.
Assim, uma sociedade inteira mantém as diferenças gritantes entre indivíduos da raça negra e da raça branca, simplesmente porque não se permite ouvir e refletir para além da superficialidade de considerar casos de preconceito racial como racismo propriamente dito.
No nível coletivo, a culpabilidade do racismo alheio é unânime, vide o caso do Goleiro Aranha. As pessoas brancas que condenaram pareciam estar convencidas de que não são racistas tanto quanto a acusada. Mas no nível individual, se permite, por exemplo usar o problema central da vida de pessoas negras para garantir sua visibilidade e ao mesmo tempo rejeitar a presença de pessoas negras no mesmo lugar em que ocupa.
Quando a pessoa branca se permite retirar a venda dos olhos, um mundo novo se abre e os efeitos do racismo na vida de pessoas negras passa a constituir para essa pessoa motivo de vergonha. Mas isso é ainda muito raro. Para nossa tristeza.
O racismo de uma pessoa pode estar escondido atrás da falta de autocrítica, como no caso dos redatores do programa Porta dos Fundos, pode estar escondido atrás da afirmação de que não se relaciona afetivamente com pessoas negras por questão de gosto pessoal, pode estar escondido atrás da suposta falta de oportunidade de conhecer a cultura negra e seus principais atores, pode estar escondido na recusa da empregabilidade de pessoas negras em lugares de poder e alta intelectualidade, pode estar escondido na aparente inocência em negar seu próprio racismo. Enfim, em algum lugar ele está escondido e em algum momento vai fugir do controle.
Então, chegamos a uma conclusão óbvia: pessoas brancas escondem seu racismo, principalmente de si mesmas, por covardia, por conforto, por ignorância e por conveniência. Mas ele continuará lá, atuando silencioso, independente do seu amigo/amor/familiar/colega participar da sua vida e independente da frequência com que você convive com essas pessoas.
A ausência de pessoas negras no cotidiano de pessoas brancas é sim sintomático, mas a presença também não é indicativo de um lugar onde racismo é inexistente, principalmente quando fica muito visível que a pessoa negra está ali para cumprir cotas e proteger pessoas brancas de suas próprias consciências pesadas (ou não!).
E esse racismo que age livremente, embora silencioso para quem é branco (porque para negros ele é extremamente ruidoso) vai continuar alimentando o caos social em que vivemos e do qual em maior escala atinge negro, mas em menor escala atinge brancos também. E ele precisa da sua sinceridade para ser expurgado de maneira eficiente para que seja desconstruído a passos curtos. Não vai ser com acusações e apontamentos isolados ao racismo do outro que esse processo será implementado.
Joice Berth escreve também no Imprensa Feminista e no Justificando, onde este texto foi postado originalmente.
Leia também sobre clássicos infantis inegavelmente racistas; e sobre os motivos por trás da solidão afetiva da mulher negra.
Alysson Augusto
January 8, 2016 @ 8:39 am
Interessante o post. Eu até entendo a crítica ao Porta dos Fundos por se utilizar de um roteiro que pretende criticar, de forma humorada, a chamada “tokenização”, mas não demonstrar a coerência que se espera entre sua arte e a vida real em sua equipe. De fato seria interessante haver alguns negros na turma, porém me pergunto até que ponto é válido inserir alguém em algo da esfera privada tão somente porque esse alguém tem determinada cor de pele.
No texto é criticada a visibilidade dada a uma pessoa negra quando se é evidente que ela entrou por cotas. Percebo as coisas por aí também, afinal uma pessoa negra entrar em meio a diversas outras brancas não por mérito/competência mas por ter nascido de tal forma não passa de demonstração de representatividade – o que nada comprova que, em termos de qualidade de serviço, houve um ganho para a equipe.
O que me preocupa na verdade não é bem se o Porta dos Fundos tem ou não algum negro na equipe – são uma empresa com determinados interesses e legitimidade o suficiente, dentro de seu ambiente privado, para decidirem se querem incluir alguém por critérios de cor de pele ou não. O que me preocupa é a mensagem passada a público. E, como foi demonstrado no artigo, não há discordâncias quanto ao que foi dito.
Sei que o ideal é fundir teoria à prática, mas também sei que ninguém deve ser forçado a fazer de sua vida profissional um ato político. Ou, pior, pessoal, como fora pressionado Paulo Gustavo sobre seu casamento.
Se queremos igualdade que saibamos alcançá-la por meio da liberdade de decisão dos envolvidos. Coação e pressão frente a decisões particulares não é a saída.
Luiz
January 10, 2016 @ 4:46 am
Meu caro, que não fiquemos em cima do muro nunca, seja de qualquer lado que for, que façamos da vida um ato político! Ótimo texto, ótima análise, parabéns Joice!
Arya
February 5, 2016 @ 8:38 pm
Agora to meio que sem entender. Quer dizer então que todo mundo é racista? Quer dizer então que é impossível que um branco não seja racista? Sendo assim o que é a definição de racismo? Como vou me auto avaliar pra saber se eu sou racista se nem mesmo sei o que o termo significa? Antes eu tinha uma ideia até clara do que é racismo, mas depois de ler esse texto racismo me parece tão mais subjetivo, amplo e complexo que eu agora fiquei sem saber o que significa. Vocês tem alguma reportagem definindo isso? Se tem, por favor, me mandem o link, se não, eu gostaria muito que escrevessem, pra eu poder entender melhor do assunto.
Cler
June 8, 2016 @ 11:05 pm
Não sou branca, mas de alguma forma também não entendi a lógica desse texto… Se tenho amigos brancos, sou racista? Se tenho amigos negros, faço para não ser considerada racista, mas no fundo sou? Se minha empregada doméstica é branca, é pq sou racista, se for negra, estou contribuindo para que o racismo continue subjugando a raça?… Não entendi, sinceramente.
jÔ gALVÃO
October 22, 2019 @ 8:07 pm
É… VOCÊ NÃO ENTENDEU MESMO.
Odair José Galdino
November 11, 2016 @ 8:34 pm
Olá a todos! Meu nome é Odair. Há mais ou menos um mês eu conheci o Nó de Oito, e essa é a primeira vez que escrevo um comentário. A intenção é deixar a minha opinião sobre o assunto no geral, e também falar o que eu entendi do texto. Não pretendo ofender ninguém, e é claro que qualquer um pode ficar à vontade para discordar totalmente do meu ponto de vista. Vamos lá então. Em primeiro lugar, parabéns para a autora do texto. Em segundo lugar, gostaria de dizer que em relação à minha cor eu não sei como eu seria classificado, pois não tenho a pele tão escura como o negro clássico mas também não sou branco. Meu pai era negro e minha mãe tem a pele mais clara. Em relação ao texto, o que eu acho que a autora quis dizer é que por as pessoas brancas na sua grande maioria não se preocuparem de uma maneira socialmente (ou talvez politicamente) ativa com o racismo, elas são racistas. Ou seja, mesmo que uma pessoa branca não ligue para cor na hora de escolher seus amigos, o fato de ela não fazer nada para que os privilégios que existem relacionados com a cor da pele na sociedade diminuam, apenas usufruir normalmente deles (inconscientemente ou não) a torna automaticamente racista. No momento não posso dizer que concordo ou discordo dela nesse ponto, pois eu teria que pensar mais no assunto para chegar a uma conclusão. Uma coisa com a qual eu concordo sem dúvida, é que o fato de a pessoa ter amigos negros não implica que ela não é racista. Eu nasci, cresci, e ainda vivo no Rio Grande do Sul, e já sofri muito com racismo implícito, que é o mais comum. Cada dia eu estou mais convencido que é um dos estados mais racistas do país, infelizmente. Bom, acho que era isso que eu queria dizer, como foi meu primeiro comentário, não queria escrever muito. Abraço a todos e obrigado à criadora do Nó de Oito pelo espaço.
Renata
March 2, 2017 @ 12:38 am
Ótimo texto, me fez pensar bastante. Confesso que por ter nascido e crescido no interior de Santa Catarina, numa cidade em que praticamente não residiam pessoas negras, passei grande parte da minha vida sem refletir sobre racismo. Pessoas negras eram aquelas que apareciam na TV, seja nas novelas ou nos noticiários, e isso acabou se fixando em mim de uma maneira negativa na adolescência. Quando me mudei para uma cidade maior que vi por mim mesma que a realidade do Brasil é bem diferente daquela cidadezinha onde me criei. Sempre que posso leio textos a respeito de racismo aqui no Nó de Oito. Quero ser uma pessoa mais consciente e não reproduzir os preconceitos que hoje identifico em pessoas mais velhas da minha familia. É bastante desconcertante notar a fala e o comportamento racista em pessoas que você ama e respeita,mas felizmente textos como este estão ajudando a abrir os meus olhos. Parabéns Joice!
Roberta
June 19, 2017 @ 11:30 am
acho que levará ajos para qhe negros e brancos descubram o tal racismo institucional. A melhor forma de debatermos e primeiramente, nos desarmarmos. Ninguém esta sendo acusado de ser racista, mas sim de ter atitudes racistas q passam imperceptíveis ao olhar deles. Por exemplo dizer q tem amigos brancos e que eles nao sao racista. Agora tente se lembrar dealguma vez q colocou uma blusa preta ou calca preta e esse fez a brincadeira. “E ai saiu pelada?. Eles gostam de vc deixam vc andar com eles e tudo mas praticam o pior dos racismos. Aquele q isenta de culp. Eu falo assim com ela pq ela é minha amiga. Tenho intimidade. Aos negros principalmente cuidado. Nao é pq vc nao acha q sofre racismo q vc nao sofra pelo contrário seu silêncio contribui para o avanço desses atos
E.S.
October 15, 2018 @ 11:27 pm
É incrível como esse post estereotipa uma etnia (que eu nem sei se existe alguém realmente branco no Brasil que não seja imigrante) inteira, sério porque só o branco tem que fazer isso? Tenho um amigo indígena que é horrores de racista, fazendo piadas horríveis com negros e chega até mesmo a dizer que ele categoricamente não gosta de negros por serem feios e que pior que um negro é um negro gordo porque parece uma bola oito, então ele não deve se conscientizar do que faz por ser indígena e que só o BRanco (que volto a dizer que nem sei se existe no Brasil um sequer que seja totalmente branco sem ser imigrante) que deve se conscientizar?