“She’s Beautiful When She’s Angry”: Os Movimentos de Libertação Feminina nas Décadas de 60 e 70
Disponível no Netflix, documentário conta a história dos principais movimentos feministas da década de 60 e 70 nos Estados Unidos, mostrando como eles ainda refletem na sociedade atual.
A palavra feminismo ainda gera um certo “desconforto” na sociedade atual. Muitas mulheres e homens ainda não compreendem o seu significado correto. Se perguntarmos a cada um(a) sobre o significado da palavra, teremos respostas diferentes, mas gosto do significado citado pela conceituada escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, em sua famosa palestra no TED “Nós Deveríamos Todos Ser Feministas“: “pessoa que acredita na igualdade social, política e econômica entre os sexos“.
Por ignorância, muitas pessoas definem feministas como “odiadoras dos homens”, que quererem destruir as famílias e acabar com a espécie humana. É comum vermos comentários odiosos em redes sociais, no círculo social e familiar, de pessoas que desconhecem a importância que os movimentos feministas trouxeram para as mulheres.
Será que as mulheres sempre tiveram direitos assegurados para trabalhar, estudar, se prevenir de uma gravidez indesejada, ocupar cargos de liderança, participar de cargos políticos e ativamente na sociedade? Claro que não. E foi através dos movimentos feministas que as mulheres receberam avanços ao redor do mundo, mudanças que alteraram a forma como conceituamos família e como vivemos enquanto sociedade.
Sabemos que alguns direitos conquistados sofrem modificações, tentativas de restrições e retrocessos. Muitos direitos não são devidamente cumpridos na vida real. As mulheres sofrem ainda com o machismo, sexismo, recebem menos que os homens, passam por desigualdades na conquista de um emprego por serem mães, não possuem creches suficientes para seus filhos; os deveres domésticos ainda não são igualmente divididos com os maridos, gerando uma sobrecarga de funções com jornadas duplas ou triplas de trabalho e mais uma gigantesca lista de desigualdades atribuídas estritamente a condição feminina. Por isso a luta sempre continua e sempre haverá muito a ser conquistado e assegurado aos direitos das mulheres.
“She’s Beautiful When She’s Angry” é um documentário de 2014, dirigido pelas cineastas Mary Doe e Nancy Kennedy, que chegou recentemente na Netflix (clique aqui para assistir) e aborda os principais movimentos feministas da década de 60 e 70 nos Estados Unidos, mostrando como eles ainda refletem na sociedade atual.
A narrativa do documentário é construída através das vozes de várias mulheres que criaram os principais movimentos feministas nos Estados Unidos. Elas falam abertamente sobre suas experiências, durante uma época que a militância feminina era algo evidentemente diminuído pela grande mídia extremamente machista. O documentário mostra diversos homens que são entrevistados por canais de TV na época que, sem surpresa, faz comentários debochados, desprezíveis, com o intuito de diminuir a causa e colocar as mulheres “no seu devido lugar” – ou seja, como no mito machista da “bela, recatada e do lar“, julgando que o papel das mulheres é estritamente cuidar dos filhos, do marido e se preocupar somente com sua beleza. Dizeres machistas e sexistas que infelizmente as mulheres ouvem até hoje.
O documentário mostra que os movimentos feministas surgiram com grande influência dos movimentos de direitos civis na década de 60, e trouxeram questionamentos e a consciência sobre a necessidade de igualdade entre homens e mulheres. Era uma época que havia muita submissão e desigualdade acumulada para as mulheres. Por isso os primeiros movimentos feministas dessa época fizeram grande sucesso rapidamente. Como se tivesse acontecido uma espécie de “despertar” esperado por várias gerações.
Marilyn Webb foi uma importante ativista americana que aparece no documentário. Ela subiu ao palco em um protesto antiguerra contra a eleição de Nixon, na frente de vários homens da nova esquerda, e foi uma das primeiras mulheres que anunciou publicamente que existia um movimento feminista do qual fazia parte. Evidentemente, ela foi hostilizada pelos homens que estavam no protesto com comentários do tipo: “Tirem ela do palco e fodam ela”, “Fodam ela num beco escuro”. Ou seja, mesmo dentro do movimento da nova esquerda, os homens não reconheciam as mulheres como pessoas e importantes ao ativismo, cometendo ataques misóginos.
Outro fato importante que o documentário aborda é o surgimento dos primeiros movimentos feministas da mulher negra, como o “Comitê da Libertação da Mulher Negra”, fundado em 1968. As mulheres negras faziam parte dos primeiros movimentos, mas não eram totalmente representadas por movimentos feministas, que eram formados, em sua maioria por mulheres brancas. Elas sofriam desigualdades ligadas a raça e classe que não eram abordadas nessas organizações.
Foi través de muitas reuniões e conversas que as mulheres dos movimentos feministas perceberam que seus problemas não eram pessoais, mas universais; que ocorriam com todas, enquanto elas estabeleciam um senso de “culpa” que não existia.
As mulheres intelectuais que possuíam na época o privilégio de estudarem – algumas tinha mestrado e Ph.D – também se rebelaram durante essa época, quando perceberam que nas universidades não havia o fornecimento de aulas sobre a história das mulheres ou sobre a arte feita por mulheres. Elas se sentiram enganadas, com uma espécie de diploma patriarcal, e rebelaram-se em protestos, queimando seus diplomas. Apesar de algumas sentirem dificuldade nesses atos – por terem conseguido estudar com muito esforço- elas conseguiram chamar atenção da imprensa por isso e aumentar a importância da discussão para a desigualdade de gênero.
Além das mulheres negras, as mulheres lésbicas também exigiram dentro do movimento feminista o devido reconhecimento e participação. Muitas feministas ignoravam as lésbicas nos primeiros movimentos, pois acreditaram que o tema do lesbianismo seria “muito assunto a ser debatido de uma vez só”. O documentário mostra uma cena emocionante, quando uma das feministas lésbicas organizou um belíssimo ato em uma das reuniões, com o intuito de demonstrar que elas tinham orgulho de serem lésbicas e a importância de incluir em pauta suas vivências e discussões.
Muitos temas importantes foram debatidos durante essa época: a legalidade de um aborto seguro para todas as mulheres; creches para os filhos(as); igualdade salarial; melhorias e informações públicas sobre a saúde da mulher; a exigência de contraceptivos que não causassem efeitos colaterais nocivos a saúde da mulher; discussão sobre o padrão de beleza feminino imposto pela sociedade; informações sobre a anatomia e o prazer feminino – muitas mulheres desconheciam sobre seus próprios corpos – e vários os outros temas relevantes. Pensar que os mesmos temas que foram discutidos há 40 anos atrás continuam pertinentes hoje em dia, demonstra que a nossa sociedade não progrediu o necessário e infelizmente ainda vivemos num mundo patriarcal, apesar de alguns direitos conquistados.
Outro destaque é a trilha sonora que, composta por várias cantoras e compositoras conceituadas da música, combinou perfeitamente com o tema do documentário: Cat Power, Bikini Kill (amei quando tocou “Rebel Girl”, conhecido como o hino do movimento musical feminista de punk rock chamado Riot Grrrl), Le Tigre, Aretha Franklin, Grace Slick (Jefferson Airplane), Nico (The Velvet Underground), Janis Ian. Você poderá ver a lista da trilha sonora aqui.
O documentário encerra falando sobre “A Marcha das Vadias”, um dos movimentos feministas atuais, que foi iniciado por uma jovem que ouviu um policial dizer para uma mulher que foi estuprada porque “Ela pediu. Ela estava vestida como uma vadia”. Aquela velha história que já conhecemos sobre a culpabilização da vítima pelos atos praticados pelo estuprador, como se a roupa ou a aparência de uma mulher fosse um “convite” para algo, como se algo mais “justificasse” um crime como esse. Crime que demonstra da forma mais odiosa e repulsiva a imposição de poder e controle sobre corpo da mulher.
Talvez você termine o documentário um pouco triste, pois assuntos discutidos há 40 anos atrás continuam sendo discutidos até hoje, principalmente a pauta sobre o aborto no Brasil, que teve pouco avanço em comparação com outros países mais igualitários.
As atuais notícias do nosso governo – não há nenhuma nomeação de ministra; o fim do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e outros retrocessos que tivemos atualmente – traz um grande desconforto ao percebermos que alguns avanços conquistados com tanta dificuldade, devido a nocividade da sociedade patriarcal, foram restringidos. Porém, ao assistir esse documentário e conhecer uma parte da história do feminismo, temos um fortalecimento para as militâncias atuais e futuras, para as mulheres continuarem a luta e não permitirem que esses retrocessos ocorram, exigindo e lutando sempre por melhorias. É um documentário que homens e mulheres deveriam assistir.
“Estou seriamente desanimada pela situação atual, mas ao mesmo tempo, estou com raiva. E uma das coisas que aprendi há décadas atrás, é que quando estamos zangadas sobre algo tão ruim, tomamos atitudes contra esse algo.” (Trecho de uma das militantes feministas em She’s Beautiful When She’s Angry)
Incluí o documentário nessa lista do Filmow, que contém outras dicas de documentários que abordam questões de gênero e feminismo: Lista Filmow. Fiz também uma matéria no blog reunindo os documentários citados aqui: 16 documentários para pensar em questões de gênero
Recomendo a palestra mencionada no início do texto:
*Texto publicado originalmente em Delirium Nerd.
Leia também 5 Comentários que as Pessoas Precisam Parar de Fazer em Discussões sobre Feminismo; e Propaganda Antifeminista – Mais de 100 Anos de Desinformação.