Resenha Feminista – Erin Brockovich, Uma Mulher de Talento

Ainda que pareça apenas mais um filme digno de Sessão da Tarde, Erin Brockovich toca de maneira delicada em questões caras para mulheres nos dias de hoje.

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Baseado em uma história real, o filme que deu o merecido Oscar de melhor atriz para Julia Roberts de tão simples parece apenas mais um conto convincente e competente. Com nuances de drama e algumas lições de moral a favor da meritocracia, ele traz a ascensão de uma jovem mulher após uma fase tenebrosa, o que o torna apto a compor sem muito esforço o roll de atrações água com açúcar da desgastada Sessão da Tarde.

Talvez, no entanto, esse tenha sido um artifício pontual para mostrar o quanto é comum, nos dias de hoje, mulheres nas mesmas condições da protagonista: mulheres que chefiam seus lares, com todas as dificuldades que o sistema machista impõe. Estranhamente, a gente se identifica imediatamente com Erin e com a angústia de se sentir sozinha no mundo, com filhos a criar e em crise por perceber que os caminhos naturais da vida de uma mulher não sugerem êxitos e glórias profissionais – especialmente para aquelas que se encaixam nos padrões de beleza vigente, limitando ainda nos dias de hoje capacidades que poderiam ser cultivadas e respeitadas, independente da aparência.

Erin passa a parte inicial do filme aturando vários preconceitos e considerações formadas a partir de dois estereótipos clássicos: mulher bonita é burra e mulher com filhos é promíscua (quanto maior a quantidade de filhos, maior e mais variada a atividade sexual).

Com três filhos pequenos abandonados pelos respectivos pais, a ex-miss, sem dinheiro para alimentar seus filhos, sai em busca de um emprego. Sucessivas rejeições, em alguns momentos pela pouca qualificação, mas na maioria das vezes por ser mãe, deixam evidente mais uma crítica ao sistema de privilégios concentrado nas mãos de homens. Sabemos que entre tantas limitações que mulheres enfrentam no acesso ao mercado de trabalho, uma das mais recorrentes está diretamente ligada à maternidade (ou a iminência dela), sobretudo para as mais jovens. Outra crítica sutil vem do fato de que apesar de já sermos quase que maioria nos bancos nas universidades, ainda carregamos o estigma da supervalorização da aparência física, e ainda somos condicionadas a estabelecer o casamento como objetivo de vida ou oportunidade de ascensão sócio-financeira.

Ao retornar de uma entrevista de emprego em que mais uma vez é rejeitada (além de ganhar uma multa de trânsito por estacionar em lugar indevido), Erin acaba sendo vítima de um acidente de trânsito. Sabendo que está certa, procura um escritório de advocacia compatível com sua condição financeira. O fraco desempenho do advogado titular e dono do escritório, Ed Masry (Albert Finney), faz com que ela perca a indenização que reclamava pelo acidente e ainda acumule mais dívidas (a multa, os honorários do advogado e o prejuízo pelo acidente).

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Em um rompante de desespero, ela implora ao advogado que lhe dê um emprego no seu inexpressivo escritório. Ele, embora tente de todas as maneiras se livrar dela, acaba cedendo e lhe abrindo uma vaga, porém sem os mesmos benefícios e direitos dos outros funcionários. Isso coloca Erin, mais uma vez, em situação comum a de muitas mulheres que, não tendo escolha, aceitam trabalhos desgastantes e com poucas garantias, algumas chegando ao cúmulo de cair no trabalho escravo, com remuneração muito abaixo do que vale sua mão de obra e sem nenhuma garantia trabalhista, acumulando stress e desperdiçado sua força de trabalho para prover patrimônios financeiros inescrupulosos (vide os recentes escândalos das Lojas Marisa, Riachuelo, Renner entre outras).

O que pareceria o final feliz deixa bem evidente que, para uma mulher e mãe, a jornada é tripla e as cobranças infinitas. Começa então a saga para encontrar alguém que cuide das crianças enquanto ela trabalha. Entre uma procura e outra, Erin encontra um novo amor que a ajudaria com as crianças ao mesmo tempo que nos leva a refletir sobre os problemas afetivos da mulher e mãe. Apesar do seu novo relacionamento ser com um homem compreensivo e companheiro, que gosta de seus filhos e ajuda mais por ter estabelecido um vínculo afetivo com as crianças do que para impressionar a mãe (coisa muito comum em relacionamentos de mulheres que já são mães), ele não consegue suprimir o traço de machismo que um homem criado em uma sociedade que o reafirma como superior a todo momento acaba por internalizar. Em um dado momento, ele sugere que ela abandone seu trabalho e se dedique mais a ele e ao relacionamento dos dois. Nessa hora, Erin mostra que podemos alcançar a maturidade e passa a ter uma relação consigo mesma muito forte. Erin descobriu seu poder interior e marcou território, deixando claro que havia lutado muito para chegar até ali e não estava disposta a abrir mão de tudo, como havia feito em seus relacionamentos anteriores.

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Nós, mulheres, ainda sacrificamos demais nossas vontades e nossas necessidades em função dos benefícios que atendem exclusivamente o homem e a vida pessoal dele. Ainda presenciamos muitas mulheres largando toda sua história de vida, todas as suas conquistas e seus vínculos afetivos com família, amigos, etc, para acompanhar as empreitadas masculinas, tentando a todo custo se convencer de que é aquilo mesmo que elas querem. O ônus vem posteriormente e a consciência de que a escolha foi manipulada pelo amor que estava em jogo naquela situação.

Quando Erin lembra das experiências terríveis que teve anteriormente, decide se colocar a frente e entende que o homem que diz que ama, também pode e deve ceder espaço para a realização de sua parceira. O rapaz, então, espera que ela tenha condições para custear uma babá e em seguida segue em viagem renunciando assim a relação amorosa. Notem que ele não dá espaço para o acordo, ele impõe a sua vontade de ter uma mulher exclusivamente para si e, quando contrariado, ainda que gentilmente, se ausenta.

Que tipo de amor age dessa forma? Por quanto tempo ele ficaria ao lado dela se ela cedesse às vontades dele? Histórias comuns que já cansamos de presenciar, muitas vezes em nossas vidas, com algumas doses de dor para gerar aprendizado e desenvolver o poder pessoal de se colocar a frente e no comando de seus próprios desejos, como os homens são estimulados a fazer desde que nascem.

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No ambiente de trabalho, começam as hostilidades dos colegas, que a julgam pelas roupas, pela maneira de falar, pelo jeito de ser. E aí, mais uma sutileza que pega uma nuance muito difícil de administrar quando falamos nos efeitos sociais do machismo: a rivalidade entre mulheres.

Nosso sistema machista tem como uma das mais eficientes armas a incessante alimentação do mito de que mulheres se odeiam. Muitas de nós mulheres, até mesmo feministas, manifestam esse efeito de maneira tão persistente, que inviabilizam algumas discussões e impossibilitam que se mantenha o bom diálogo e a propagação de informações libertadoras. São episódios de disputa e rivalidade, como se no final houvesse um troféu a se ganhar por ser melhor que a outra. É um truque machista, que na verdade serve muito bem para a manutenção da supremacia masculina, pois distancia as mulheres, enfraquecendo o poder de atuação e de valorização espontânea que a convivência sadia poderia despertar. Temos sempre demonstrações de respeito e companheirismo entre homens, mesmo que estes sejam totalmente desconhecidos. Eles apedrejam mulheres, inclusive atribuindo os erros de outros homens a elas, mas mantém no mínimo um silêncio cômodo diante de outro homem, ainda que seja muito evidente o erro.

“Ah, se ele agiu assim foi porque teve motivos” é uma fala muito conhecida entre homens. Não é à toa que quando se procura uma delegacia para denunciar crimes de abuso, estupro, violências dirigidas a mulheres, encontramos um clima de deboche e hostilidade, a explanação das situações é sempre colocada em dúvida e toda afirmativa de que houve um crime é deslegitimada por parte de quem recebe a queixa. Essa rivalidade entre mulheres é estimulada, inclusive, pelos meios de comunicação, onde quase sempre que há um conflito os opositores são do sexo feminino e os motivos sempre giram em torno da presença de um homem.

Erin recebe olhares de reprovação, cochichos ofensivos e fofocas sendo feitas pelas colegas diretamente ao chefe. Atribuem a sua contratação a um suposto caso com o dono do escritório e algumas sabotagens são feitas, até que ela explode e responde de maneira incisiva, mas com argumentos errados, que concentra no fato de sua estética exuberante ser o motivo da “inveja” das colegas.

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Um golpe de sorte, então, acaba coincidindo com traços marcantes da personalidade de Erin – como inteligência, dinamicidade e ousadia -, além de um senso humanitário de fazer inveja (!!!) a muitos ativistas por aí. O golpe de sorte é a atividade que exerce, a de arquivista, onde ela se depara com uma ação movida pela população de uma cidadezinha contra uma empresa que poluía os lençóis freáticos da região. Responsável por abastecer o rio que fornece água para toda a cidade com uma substância chamada Hexavalent Chromium (Cromo hexavalente), a empresa causou males irreversíveis na saúde dos moradores e inclusive alguns óbitos entre a população contaminada. Ciente de seu ato criminoso, ela tenta comprar todo o território para abafar o caso.

Erin convence, então, o cansado Eddy a atender aquelas pessoas e encarar esse trabalho, não só pelo dinheiro envolvido, mas também pela oportunidade de ajudar pessoas simples que foram vitimadas pela selvageria capitalista que passa por cima de vidas humanas em nome do aumento de ganhos já exorbitantes. E eles acabam por entrar para a história, ganhando para aquela população uma indenização altíssima e elevando o nome do quase falido escritório ao status de referência em grandes causas coletivas contra grandes corporações.

Em suma, Erin Brockovich pode parecer apenas mais um filme digno de Sessão da Tarde, mas toca de maneira delicada em questões caras para mulheres nos dias de hoje. Vale a pena conferir.  

*Texto publicado originalmente em Imprensa Feminista. 

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