A Importância da Desconstrução de Si Mesmo nas Lutas Sociais
Antes de lutar contra qualquer problema, certifique-se de que o problema não está em você também.
A atriz Marjorie Estiano manifestou pelas redes sociais seu apoio público em favor da luta contra transfobia. Decisão assertiva e acertada. Artistas de toda e qualquer vertente são formadores de opinião. Inspiram e induzem, ainda que não queiram ou não saibam, comportamentos e ações nas mais variadas camadas da sociedade. A visibilidade é poderosa e essas pessoas, seja na música, na literatura (em menor aderência, infelizmente!), no cinema ou na teledramaturgia (principalmente!), exercem um fascínio sobre as outras que se consideram comuns.
Mesmo sendo positiva, no entanto, essa influência não é o ideal, pois ela limita o comportamento e pode ser usada de maneira inadequada. Observamos o nível de alienação em que as pessoas estão envolvidas e o quanto estão sendo manipuladas por meios de comunicação que primam pela manutenção de seus privilégios e interesses perante a sociedade. Não temos um veículo de comunicação sequer que tenha como princípio básico a honestidade e o comprometimento com a informação verdadeira. É uma cultura que se desenvolveu além da nossa consciência e está enraizada nas relações sociais, influenciando diretamente o comportamento do cidadão.
O que seria da mídia sem as pessoas? Simplesmente não seria, tamanho nível de simbiose em que estamos e que só perdeu um pouco de sua força com a democratização do acesso à internet. Então cria-se um esquema que atua de forma a manter a atenção da população, se valendo dos mais variados e escusos recursos que garantam a audiência e amorteçam a inteligência e o senso crítico. Vide a orla de pessoas que se prestam a concentrar sua atenção em frente uma tela, que exibe um programa cujo único mote são as interações forjadas entre diversas pessoas que convivem dentro de uma casa, em um tom indigesto de competição por um prêmio em dinheiro. Sem nenhum tipo de recurso mais sofisticado ou até mesmo mais intrigante que justifique os nervos que se exaltam pelos acontecimentos “espontâneos” dentro da casa, anunciantes faturam em cima da natural curiosidade de seres humanos pelas vidas uns dos outros.
Mas, em tempos em que a internet faz eco com suas intermináveis denúncias a respeito das importantes distorções sociais que tanto emperram nosso progresso, é muito oportuno que artistas de todas as vertentes se posicionem contra as opressões que criam ilhas de exclusão e segregação na estrutura da sociedade, cerceando a vida de tantas pessoas e impedindo quem se enquadra dentro das chamadas minorias sociais de ter plena autonomia e desenvolvimento igualitário.
Transfobia é uma delas. É uma das opressões que se situa na categoria gênero, sendo que, se nossa visão sobre o assunto é extremamente limitada e limitadora, as possibilidades e vivências nesse campo não são. Temos pensadores trazendo novas maneiras de vivenciar nossa própria identidade e se livrar das construções sociais que impõem padrões estéticos e comportamentais excludentes. Não são novidades ou modos de vida que surgiram recentemente, como muitos imaginam. Estão apenas sendo descortinados por pessoas que cansaram de se sentir marginalizadas simplesmente porque não estão vivendo de acordo com o que o senso comum prega.
Transgêneros, por definição sucinta, são pessoas cuja indicação sexual biológica não corresponde a identificação comportamental e psicológica que carregam. Diversos estudos apontam para essa realidade, e esta não depende da aceitação ou aprovação de outras pessoas. Transgêneros são acima de tudo pessoas e devem ser respeitados como tais, sendo resguardados de atitudes violentas de gente que não tem condições de assimilar outras realidades.
Em geral, essa atitude agressiva, autoritária e na maioria das vezes violenta diante de realidades menos conhecidas nunca é solitária. Costumo dizer, baseada em observação criteriosa, que pessoas desse tipo manifestam em seu comportamento preconceituoso um conjunto de aversões e repulsas que se estendem a outras representações sociais, tais como negros e mulheres. Ou seja, racismo/machismo/LGBTfobia são manifestações casadas de ignorância e perversidade que confinam as ditas minorias sociais ao racionamento de oportunidades e à permanente insegurança e sentimentos de inadequação, impostos por sujeitos sociais que se julgam importantes o suficiente para decidir o que é certo e/ou errado.
Essa dinâmica imposta pela ignorância e soberba da maioria das pessoas é criminosa e deve ser combatida. E por que não se valer da visibilidade de pessoas que estão circulando na mídia para auxiliar nessa árdua tarefa de desconstrução de padrões e opressões?
A frase estampada na camisa da atriz infelizmente virou um clichê que já se popularizou juntamente com a hashtag #somostodosalgumacoisa. E virou clichê, porque sabemos que não passa de uma maneira covarde de mobilizar favoravelmente a opinião pública em nome da vaidade, do desejo inconsciente do ser humano em se mostrar “bonzinho”. Muitos desses artistas que se valem desses recursos acabam por denunciar seus próprios modos preconceituosos, machistas e racistas. Vide o casal Huck com a infeliz campanha #somostodosmacacos e o sertanejo Michel Teló em seu vergonhoso Black face (recurso altamente racista criado para ridicularizar pessoas negras), no “combate” ao racismo. Não é uma atitude muito honesta, tentar combater algo que nem ao menos sabe definir teoricamente.
“Eu não preciso ser trans para lutar contra a transfobia.”
Essa frase expõe uma verdade. É de obrigação de todos colocar o mundo no eixo e eliminar esses problemas estruturais, pois como bem lembrou a atriz MC Roberta Estrela D’Alva:
“Se a paz não for para todos, ela não será para ninguém!”
Mas antes de mais nada, é necessário lembrar que uma vez que essas manchas estão latentes nos nossos meios sociais, em nossas famílias, nosso meio profissional, etc, atuando silenciosamente e de maneira naturalizada nas bases corroídas da sociedade há séculos, não há possibilidade de isenção total da manifestação desses comportamentos em nosso cotidiano.
E é aí que devemos agir, promovendo uma reflexão profunda e uma autoanálise sincera para avaliar até que ponto essas distorções estão no nosso interior, compondo nossas crenças mais antigas, nossas verdades mais camufladas e sendo reproduzidas a exaustão sem ao menos nos darmos conta. Posso dizer seguramente que precisei de muito diálogo e leitura empenhada e sincera para assimilar a possibilidade de uma pessoa se sentir de maneira diferente do que ela vê em frente ao espelho. Um longo processo de desconstrução de pensamento e reconstrução de comportamento foi necessário e isso exige um desprendimento de muito do que me foi ensinado e, principalmente, da vaidade que nos faz resistir diante da possibilidade ou certeza de se estar errado.
É responsabilidade de toda e qualquer pessoa levar adiante um primeiro passo que já foi dado pela humanidade, ainda que muito sutilmente, na direção da nossa libertação comportamental. Estamos nesse período histórico, travando discussões onde nossos comportamentos mais recorrentes estão sendo expostos, o que acirra os ânimos e produz discussões intermináveis e exaustivas, mas necessárias.
A internet vem favorecendo essa luz florescente apontada sobre as nossas distorções íntimas. Estamos atualmente “descobrindo” pessoas do nosso círculo de convivência que demonstram comportamento absurdamente racista, machista, elitista, fóbico, etc. É natural que envolvidos pelo choque inicial, tenhamos desprezo e angústia. Mas é o momento de se perguntar: será mesmo que eu sou diferente do meu amigo/pai/mãe/namorado, etc?
Sejamos sinceros e usemos essa oportunidade para avaliar quantas vezes fomos racistas por julgar que nosso melhor amigo negro seria incapaz de fazer algo mais elevado ou ainda quando fizemos comentários machistas sobre nossa melhor amiga que tem uma vida sexual ativa.
É hipócrita a pessoa que não age de acordo com a cartilha que recomenda. Que não bebe da mesma água que serve. Que não age de acordo com aquilo que sabe ser o certo. E nós sempre sabemos quais são nossos erros, ainda que muitos prefiram a covardia da camuflagem de si mesmo. E isso, nesse país que parece atacar de maneira visceral a corrupção, mas é permissivo com as pequenas fraudes cotidianas que o favorece, é bem comum. Antigamente havia uma frase, muito proferida por nossos avós que dizia:
“Faz o que eu mando, não faça o que eu faço.”
Para além da discussão sobre abordagens pedagógicas nas relações pais e filhos, isso traduz uma prática vista como natural há muito tempo. Muitos de nós fomos criados em cima desse modus operandi. Em geral as pessoas não aplicam aquilo que dizem para si, e as redes sociais são também um bom exemplo disso. Como é fácil acreditar em um mundo mais justo e igualitário quando levamos em conta apenas as postagens de amigos e familiares que sinalizam uma postura ‘politicamente correta’, sincera e amável, livre de preconceitos e restrições sociais, mas que na maioria das vezes não identificamos na convivência fora do campo virtual.
No caso de Marjorie Estiano, é evidente que a frase que estampa a camisa é verdadeira, bem como é muito provável que a intenção de quem a usa também o seja. Mas já dizia o dito popular que o caminho do inferno está pavimentado pelas boas intenções.
E partindo desse princípio, nasce uma real necessidade de questionar de que tipo de luta estamos falando. Você não precisa figurar entre os grupos que compõem as chamadas minorias sociais para lutar contra o conjunto de práticas que confinam esses grupos nesse lugar social. Óbvio. Em algum momento da história, a noção de coletividade se perdeu e as pessoas não conseguiram mais refletir de forma abrangente sobre as consequências de medidas sociopolíticas implantadas para favorecimento de um nicho específico, atuando de maneira universal.
É preciso perceber que as resultantes impróprias que se formam a partir dessas práticas atingem em larga escalas as ditas minorias, sim, mas sempre irão respingar nos outros círculos sociais que as circundam. Temos o problema da segurança pública como exemplo mais gritante e menos assimilado pela sociedade. A violência não se forma sozinha e nem brota do solo da noite para o dia. Somos uma sociedade que produz criminalidade cada vez que somos coniventes e negligentes com a urgência em se discutir um novo planejamento educacional, ao invés de falar em aumento no investimento financeiro das instituições educacionais. Produzimos criminalidade quando nossa indignação seletiva aplaude o acúmulo de propriedade (leia-se terras) nas mãos de alguns, sem questionar a procedência desses imóveis, ao passo que repudiamos famílias que se aglutinam nas periferias e lugares impróprios para moradia, que acabam por se tornarem vítimas de deslizes de terras, geralmente fatais. Produzimos criminalidades, quando nosso juiz interior, umbiguista e demagogo, se compadece com o racismo de famosos e continua escondendo a bolsa ou negando emprego para pessoas negras anônimas. Produzimos criminalidade quando compactuamos com a especulação imobiliária, comprando nossos apartamentos das mãos de construtoras assassinas de cidades e meio ambiente e agimos de maneira preconceituosa com as resultantes dela, que são os bairros periféricos distantes da infraestrutura vital para toda a população, entre muitas outras situações.
Nesse sentido, artistas que se engajam em lutas sociais, ainda que de leve e respeitando o protagonismo daqueles que são diretamente interessados, devem passar por esse exercício de reflexão e buscar dentro de si onde mora os preconceitos e o potencial opressor que certamente existe. E assim, ao dizer que está lutando por algo, ter a certeza de que está lutando pelos problemas estruturais da sociedade e também, pelo comprometimento que esses problemas implantaram dentro de si mesmo.
Do contrário, estaremos fadados a demagogia, hipocrisias e falácias que nos transformam em caricaturas de nós mesmos.
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