A História da Bicicleta Urbana na Dinamarca e Holanda
A bicicleta nem sempre foi tão popular como é hoje no norte europeu. Entenda como a magrela conseguiu se tornar um meio transporte eficiente nesses países.
Imagine um mundo em que o tempo que você leva de casa até o trabalho nunca varia. Pense nas implicações disso por um momento. Você pode dormir um pouco mais de manhã. Você não precisa sair de casa duas, três horas antes do seu compromisso porque tem medo que o trânsito o atrase. Você não fica perigosamente perto do sovaco de algum cara dentro do trem absurdamente lotado. Você não tem um ataque de pânico toda vez que a Glória Vanique anuncia que aconteceu um acidente na Marginal (mais uma carreta tombada).
Parece fantasia, mas esse mundo existe. Essa é a realidade de dinamarqueses, holandeses e outros afortunados povos pelo mundo que entenderam que bicicleta é algo que deve ser usado como meio de transporte, e não somente como brinquedo de fim de semana. E desde que conseguiram convencer seus governantes da necessidade e da importância da magrela, são mais livres do que nós. Como isso aconteceu? A História conta e, se formos bons alunos, ensina.
A população e o governo reconheceram que bicicleta faz mais sentido como meio de transporte do que automóvel
Desde a sua invenção, no final do século XIX, a bicicleta sempre foi queridinha nos países nórdicos. No entanto, antes que você comece a falar que isso explica tudo e que é uma questão cultural, queria chamar a atenção para outro fato: ela também era queridinha na costa oeste americana, particularmente em Los Angeles. Na época, a cidade ostentava a mais impressionante ciclovia do mundo, a Arroyo Seco Cycleway. Nada disso impediu que o automóvel tomasse conta. Em pouco tempo a Arroyo Seco Cycleway foi desativada e transformada em uma rodovia. Hoje, Los Angeles registra os piores congestionamentos em todo os EUA. Irônico. Tudo isso para te mostrar que não, não é cultural. É uma questão de escolha. E nunca é tarde para fazer a escolha certa. Bom, voltando à História.
Logo de cara, a bicicleta passou a ser utilizada pela população como meio de transporte – mesmo sem a infraestrutura adequada. A população dinamarquesa já via a bicicleta na época pelo o que ela é ainda hoje: uma forma de liberdade. E por esse motivo, já foram criados logo no começo clubes e associações de ciclistas que foram se fundindo e assumindo um status quase de sindicato, com objetivos políticos e o interesse de defender os ciclistas politicamente. Isso foi muito importante, pois fortaleceu a febre da bicicleta para o desafio que viria em breve, com o advento do automóvel. Em outros países, em contrapartida, quando o automóvel apareceu e se tornou acessível, a bicicleta deixou logo de ser um veículo para se transformar em brinquedo e, quando a indústria esportiva pegou a deixa, em esporte. E é por isso que você só pensa em usar a sua bicicleta no parque, de fim de semana. Nós fomos criados para vê-la como um esporte suarento, não como uma forma de chegar nos lugares.
Bem, no fim das contas o pior não pôde ser evitado e, por volta da Segunda Guerra Mundial, o automóvel chegou para ficar. E os seus efeitos logo se fizeram sentir. Em Amsterdã, prédios foram demolidos para dar espaço para os carros, praças se transformaram em estacionamentos e a antiga estrutura para bicicletas, já insuficiente, foi destruída. Tanto em Amsterdã como em Copenhague, o número de ciclistas começou a declinar rapidamente. De repente, não tinha mais espaço para bicicletas, e mais: pedalar se tornou perigoso com tantos carros na rua. Em 1971, 3300 ciclistas morreram no trânsito em Amsterdã; 400 eram crianças. O mesmo acontecia em Copenhague. Em protestos, a população dinamarquesa pintava cruzes brancas no asfalto, onde ciclistas haviam perdido a vida. Pais holandeses protestavam com faixas: “Parem com o assassinato de crianças!”. As organizações de ciclistas pressionavam o governo para tomar medidas e incentivavam o uso das bicicletas.
Esse clima de protestos, violência e insatisfação aliados à crise do petróleo foi o que bastou para o governo dos dois países capitularem. De repente, não só era violento ter carros nas ruas, como também era caro. Era preciso achar uma forma de depender menos do petróleo estrangeiro. E foi então que juntaram dois mais dois e chegaram na resposta certa. Nos dois países, os governos começaram a estudar, reconstruir e expandir toda a estrutura cicloviária anterior. Os Domingos Sem Carro – um programa para fazer com que a população economizasse combustível e que existe até hoje em diversos países – faziam com que as pessoas vissem novamente como era a cidade sem o caos automobilístico e criavam o desejo coletivo de poder andar livremente e com segurança de bicicleta todos os dias da semana.
Com a infraestrutura se desenvolvendo, mais e mais pessoas voltaram a utilizar a bicicleta como meio de transporte e é assim até hoje. Hoje, 90% da população de Copenhague tem uma bicicleta e 37% a utiliza todos os dias como meio de transporte. É importante perceber que essas pessoas usam a bicicleta não porque é legal, ou porque é um exercício, ou por causa do meio ambiente. Elas usam a bicicleta porque faz sentido. Logo no começo a população percebeu que era realmente a forma mais eficiente, barata e versátil de se deslocar e pressionou o governo para torná-la viável e segura. O que nos leva aos próximos itens.
A infraestrutura foi levada a sério
Se você anda de bicicleta frequentemente, conhece o drama de andar em uma rua esburacada. Tudo sacode, o cérebro parece solto dentro da cabeça e a bunda fica em petição de miséria. E é por isso que eu sempre observo atentamente o caminho e desvio o máximo possível dos buracos indesejados. Nessa de ficar sempre desviando, frequentemente me vejo pedalando no meio da rua, onde o asfalto é mais liso. Mesmo para mim, que moro em uma cidade pequena, isso já é perigoso. Imagine, então, em uma cidade com grande fluxo de automóveis. Felizmente, os governantes da Dinamarca e da Holanda entenderam isso perfeitamente.
Logo que a necessidade de criar uma boa estrutura para bicicletas se tornou inegável, nossos amigos europeus colocaram mãos à obra e estudaram a fundo o comportamento do ciclista. Com isso, perceberam, por exemplo, que todo ciclista busca instintivamente andar em solo mais liso, nem que isso signifique se enfiar no meio dos carros. E que basta uma colina com angulação maior que 2,5% para fazer com que o ciclista desça da bicicleta e prefira empurrá-la.
Isso tudo ajudou os engenheiros a conceber o melhor plano possível para as ciclovias e ciclofaixas. Elas tinham que ser de boa qualidade – lisas e sem inclinações para os lados; tinham que chegar em algum lugar que fizesse sentido – seja outra ciclofaixa, seja uma estação de metrô com estacionamento para bicicletas -; e tinham que fazer sentido – por exemplo, não adiantava implementar uma ciclofaixa em ruas com pouca circulação de carros e ciclistas ou em ruas muito íngremes.
Com esse tipo de planejamento, é altamente improvável que você gaste dinheiro à toa. Com esse tipo de planejamento, as ciclovias e ciclofaixas das cidades de Copenhague e Amsterdã fizeram sentido para os seus habitantes; tornaram mais fácil e segura a locomoção em duas rodas; e fizeram disparar o número de pessoas que optaram por deixar o carro em casa e adotar a bicicleta para o dia-a-dia. E não pense você que o planejamento acabou – de jeito nenhum! A cidade de Copenhague utiliza 25% do orçamento destinado a rodovias somente na infraestrutura para bicicletas todos os anos. Isso criou, ao longo do tempo, quase 400km de ciclovias e ciclofaixas, além de mais de 35.000 estações de estacionamento para bicicletas. E estão sempre inovando, como com o chamado green wave. Com essa inovação, os semáforos para bicicletas são sincronizados com os semáforos de carros de modo a permitir que o ciclista viaje a uma velocidade constante de 20km/h sem precisar parar por até 6km. É de cair uma lágrima.
Sim, os ciclistas são muito bem tratados nas paragens dinamarquesas. Mas isso não significa que estão livres para fazer o que bem entenderem. O que nos leva ao próximo ponto.
Existem regras, e o ciclista é punido se não segui-las
Não adianta nada reconhecer a bicicleta como meio de transporte e criar espaço para ela sem criar uma legislação específica para o seu uso. Como o ciclista deve se comportar ao atravessar a rua, que tipo de sinalização deve utilizar, em que faixa deve trafegar, e muitas outras questões destinadas não só para ciclistas, mas também para carros que vão compartilhar espaço com eles, devem ser contempladas e aplicadas na legislação de trânsito de uma cidade que quer levar a bicicleta a sério. E esse é o caso tanto de Amsterdã como de Copenhague. Nas duas cidades, essa legislação existe e é aplicada rigorosamente.
Ciclistas são multados por circular onde não devem ou por não ter uma luzinha de bicicleta ao trafegar à noite, por exemplo. As crianças aprendem na escola logo cedo como devem se comportar no trânsito, tanto em um carro como em uma bicicleta. As pessoas entendem que carros, bicicletas, ônibus, trens e motos são todos meios de transporte que devem compartilhar um espaço. O governo tem a responsabilidade e a função prática de garantir que esse espaço acomode todo mundo em segurança. Mas você também tem que fazer a sua parte. Isso envolve pensar além do próprio umbigo. Como esse pode ser um exercício difícil para muitas pessoas, é aí que entra a punição. E é assim que as pessoas se conscientizam.
Com tudo isso, você deve estar pensando: poxa, mas é uma questão cultural, sim! As pessoas gostam de bicicletas por lá desde sempre, por isso foi tão fácil largar o carro assim que as coisas começaram a ficar boas para o ciclista! Você pode duvidar, mas o apelo do automóvel é tão forte nesses países como o é por aqui. Todo mundo adora um carro. E é por isso que para que a adesão à bicicleta ocorresse em massa o governo teve que dar mais uma mãozinha. Basicamente…
Fizeram com que ter um automóvel doesse muito no bolso
E esse foi o golpe de misericórdia que fez com que a bicicleta ganhasse a disputa. O governo desses países percebeu que promover a infraestrutura criada para bicicletas simplesmente não era o bastante. Por isso, criaram uma série de impostos e restrições para o uso do automóvel. E o que é mais lindo é que parte desses impostos são utilizados em infraestrutura para bicicletas, não para carros. Além disso, a Dinamarca remove até 3% de vagas para carros nas ruas todos os anos, e as transformam em espaço público ou de lazer. Com isso, andar de carro se tornou caro e extremamente irritante.
Vale lembrar, no entanto, que isso não significa que as pessoas não tenham carro por lá. Bastante gente tem carro, sim, mas prefere utilizá-lo em viagens mais longas, ou de fim de semana. Basicamente, como um item de lazer para ser curtido nos dias de folga. Exatamente o contrário do que acontece por aqui.
Leandro
September 6, 2015 @ 6:34 pm
Gostei demais do texto.
Eu ando, em 90% do tempo, de moto em São Paulo. Mas acabei de comprar uma dobrável Durban Commuter. Como moro em outra cidade, terei que fazer parte do trajeto de ônibus, até a ciclovia da Av. Eliseu de Almeida.
Eu sempre sonhei com um trânsito saudável, em que as pessoas se ajudassem, mas isso está cada vez mais distante, e acabei ficando muito estressado e desenvolvi alguns pânicos por causa da “vida loka” de andar de moto por aqui. Não vejo a hora de poder pedalar. Não é para economizar tempo, já que vou demorar mais do que com a moto, mas é para me sentir mais livre.
O mercado barra muito a coisa da vida sustentável e que faça sentido.
Lara Vascouto
September 8, 2015 @ 12:33 pm
Sei como você se sente, Leandro. Quando morava em São Paulo também comecei a perder a cabeça no trânsito. Conheço gente que desenvolveu ataque de pânico por causa de metrô lotado, trânsito parado, motoristas alucinados. Acho que você será mais feliz com a sua magrela! É aos pouquinhos e com as nossas próprias ações que as coisas mudam. Boa sorte! 🙂