“Fica entre nós, esse será o nosso segredinho…”

Um relato verídico de abuso sexual na infância e como é possível superá-lo e ter uma vida normal.

[O relato abaixo é de uma prima querida, uma mulher incrível que resolveu contar sua história na esperança de ajudar outras vítimas. Ela está disposta a conversar e a ajudar ainda mais, portanto, se tiver interesse, por favor entre em contato com o Nó de Oito pelo e-mail nodeoito@gmail.com.]

Minha história… Eu sei que tem pessoas que passaram e passam por muitas situações piores do que as que passei todos os dias, mas sinto que para melhorar meu “dilema” eu preciso compartilhar isso com vocês. Quem já sofreu qualquer tipo de abuso irá se identificar. Então lá vai…

Eu era uma menina bem feliz, espoleta, brincalhona e teimosa como a maioria; era ingênua e tinha apenas 6 anos quando tudo começou. Se me perguntarem quais são as minhas memórias de como isso chegou a acontecer e por que eu não corri e fui buscar amparo com meus pais, eu vou responder que não tenho essa resposta. Hoje com 19 anos de idade eu me pergunto e me incomodo com esse fato que me desola profundamente.

Infelizmente, como na maioria dos casos, um parente meu foi meu agressor. Tudo começou quando a minha vó decidiu que o meu primo poderia passar um tempo morando na casa deles que ficava a uns 30 metros da minha casa. Eu e minha irmã, como sempre, estávamos lá para passar um tempo com nossos avós. Mal sabiam eles que o pior poderia acontecer. Mas sabe, o que é o pior disso tudo é o fato de que eu me culpo por tudo que aconteceu e mesmo minha psicóloga falando para mim que eu não deveria me culpar, afinal eu tinha 6 anos e nem sabia se aquilo era certo ou não, ainda assim me culpo e por muito tempo fiquei com raiva de Deus por não deixar que eu esquecesse esse fato, que infelizmente irá assombrar minha vida inteira.

As primeiras memórias desse fato que eu me recordo são “NÃO CONTE ISSO A NINGUÉM, ESSE SERÁ O NOSSO SEGREDINHO”.

E então toda oportunidade de quando meus avós nos deixavam sozinhos ele aproveitava e eu simplesmente ia, mesmo no fundo sabendo que isso parecia errado, afinal se fosse certo por que teríamos que esconder. Eu simplesmente não entendia muito sobre essas coisas e simplesmente fui persuadida a acreditar que era tudo bem o que ele fazia comigo. O maior trauma é o fato de eu sentir prazer com aquilo tudo, eu me enojei por muito tempo por sentir isso de algo tão doentio e também o fato de que a minha inocência era arrancada de mim a cada episódio. A cada toque no meu corpo frágil e ainda tão pequeno, eu simplesmente ficava quieta, sendo toques com as mãos ou com a boca.

Eu sei que preciso me perdoar por me culpar, e até tem dias que eu acredito que realmente me perdoei, mas essa memória sempre volta uns dias mais forte, outros dias eu sequer lembro, mas ela é a minha memória mais forte, infelizmente, e não adianta eu lutar contra ela, pois quanto mais luto para que ela desapareça mais pensante nela eu fico, tornando ela mais viva e mais forte do que nunca.

E se me perguntarem quantas vezes isso me aconteceu não saberia dizer, mas sei que foram várias vezes.  A segunda memória mais forte que eu possuo é de todas as noites que eu esperei todos irem dormir para que eu deitasse em minha cama e chorasse muito, pedindo enlouquecidamente que aquilo desaparecesse, que a culpa fosse embora, que Deus me ajudasse. Lembro-me bem de suplicar essa frase repetidas noites nas minhas orações: “Me ajuda Deus…. Me ajuda, por favor, me faz esquecer, faz com que eu não sinta mais culpa, por favor…”.

Como minha inocência foi tirada, e ele despertou o desejo sexual de uma criança, eu comecei a me masturbar, às vezes diversas vezes num dia, eu havia me sucumbido ao desejo e me punia por isso.

A única coisa que eu consegui contar aos meus pais sobre o que me aconteceu foi que ele havia mostrado suas partes para mim, pois eu tinha muita vergonha do que havia acontecido para poder contar que não era só isso. Sem falar de um medo enorme da reação deles perante a isso. Irão ficar com raiva de mim? Me colocarão de castigo? Irão me bater? Ou então olharão para mim com desprezo e nojo? …Era isso que eu pensava toda vez que eu olhava para eles e me sentia triste por querer contar a eles. Então eu decidi que iria ficar por isso mesmo, que eu iria guardar só para mim. Os anos foram passando e eu fui crescendo e fui me tornando uma pessoa extremamente insegura, indecisa. E deixei esse acontecimento bem guardado dentro de mim.

No entanto, eu cometi um erro. Quando eu cresci, eu achava que meus pais sabiam a história inteira, achava que eu havia contado tudo aquela vez e me tornei intolerante por achar que estavam sendo indiferentes comigo quanto aos meus sentimentos. Mas eu estava errada… Eles não sabiam que a princesa deles havia sido abusada. E então em um dia de briga com meus pais quando eu tinha uns 15 anos, quando minha mãe falou que eu não podia reclamar da minha vida, porque ela havia sofrido demais na infância, com a perda do seu pai e de sua irmã e com doenças que penetraram na família dela, eu fiquei chocada.  Afinal, como ela podia falar isso, sabendo o que eu passei? E eu disse a ela “você não pode dizer isso, você sabe bem o trauma que eu tenho”. Mas percebi pelo olhar dela que ela não sabia e foi aí que eu me dei conta que a tristeza iria voltar mais forte do que nunca, pois eu precisava contar a eles finalmente, para dividir o peso que por anos eu carregava dentro de mim.

Eu preferi não contar naquela hora, apenas fiquei chorando e minha mãe ficou ali, pensando em como mal-agradecida eu era. Nos dias e meses seguintes eu só planejava na minha cabeça em como contar e se contaria para todos juntos, ou para alguns antes do que outros.

Meu irmão estava morando em Florianópolis na época, cursando a universidade, então eu decidi que queria contar a ele antes e esperei quando fossemos visita-lo. Então em uma volta no shopping Floripa, eu contei para ele o que me atormentava tanto. A reação dele me confortou, pois ele não me condenou ou criticou, se mostrou cuidadoso comigo, me deu amparo num abraço e conseguiu fazer com que eu me sentisse mais leve por eu finalmente ter contado isso a alguém.

Em seguida foi a vez de contar para a minha mãe, que ficou um pouco sem entender por que eu não havia contado todos aqueles anos e fez várias perguntas como quantas vezes aconteceu, se ele havia me estuprado também. Felizmente ele não me estuprou.

Logo depois dela foi à vez do meu pai, a pessoa com a qual eu mais tinha relutância em contar, pois ele é aquele pai conservador. Então eu fiquei com muito medo da reação dele. Minha mãe estava junto quando eu contei, porém ele ficou brabo comigo por eu ter deixado os outros saberem antes dele. Isso me atormentou, afinal, como ele poderia estar mais preocupado com isso do que com o fato de que eu havia sido abusada? Fiquei confusa e com raiva naquele momento. Mesmo eu sabendo que ele havia ficado chocado com aquele fato, por ora acabei me arrependendo de ter contado a ele, devido à reação inusitada que eu acabei recebendo.

No decorrer de algumas conversas que se seguiram sobre esse assunto nos próximos dias, semanas e meses, eu conversava com eles sobre o fato de denunciar. Eu queria fazer isso, pois me pegava pensando: e se eu não for a única vitima dele?

E a resposta dos meus pais sobre isso era: Já passou muito tempo…as pessoas não acreditarão em você. Dava pra ver que eles hesitavam em fazer isso, até pelo fato de que morávamos em uma cidade pequena e isso, de certa forma, iria mudar a imagem de família “perfeita” que tínhamos. Isso me deixou enfurecida, primeiro porque eu ia carregar a culpa de que ele poderia fazer isso de novo, e segundo porque eles estavam negligenciando o fato e a mim quando falavam isso, e isso doía muito de se ouvir, principalmente porque eram meus pais, o meu porto seguro que estava falando isso.

Chorei muito quando percebi que isso estava acontecendo. Demorei anos para poder e conseguir contar algo como o que eu contei, mas jurava que negligenciar o fato, jurava que isso não iria acontecer. Até porque meus pais sempre foram do estilo tradicional, com regras, limites bem específicos, com horários pontuais sobre quanto tempo poderíamos ficar naquela festa, sempre perguntando quem ia, pois se caso eles não conhecessem eu não poderia ir, nunca deixando eu e meus irmãos dormir na casa de nosso colegas e amigos…

Para dizer bem a verdade a quem estiver lendo isso, até hoje eu não me conformo com essa decisão deles, mas o pior é que eu de certa forma aceitei isso. Eu não estava pronta também para ficar exposta, até o momento em que decidi que eu poderia ajudar quem já passou por isso e assim comecei a escrever e pretendo fazer muito mais.

Acreditem ou não, vocês não tem ideia que quem se mostrou mais presente em todos os anos em que guardei isso e em todos os momentos em que me afastei para chorar, quem mostrou amparo sem saber o que estava acontecendo, foi a minha cachorrinha. Sempre que eu estava triste e inconformada com essa situação me agarrava a ela como se ela entendesse e pudesse me ajudar, mas era bom, pois dessa forma eu não me sentia tão sozinha.

E por último foi a vez de contar para a minha irmã mais nova. Esperei um tempo maior para contar a ela, porque ela era tão nova e eu pensava que se ela tivesse mais idade, ela iria entender melhor o que havia acontecido comigo e talvez não sofresse tanto com isso, pelo menos é assim que eu penso até hoje. A reação dela também foi como se ela tivesse ficado surpresa pelo ocorrido, mas ela me surpreendeu e encarou bem a situação e eu fiquei orgulhosa dela por não me criticar e por tentar me entender.

Se eu me arrependo de ter guardado essa informação por tanto tempo? Sim, se eu tivesse noção de que contar a minha família o que me perturbava tanto, mesmo se tivessem uma reação ruim, eu iria me sentir mais liberta. Sei que ninguém quer ser incompreendido quando algo ruim acontece e que infelizmente quanto aos assuntos abuso sexual, estupro, assédio, ainda pouca gente entende que a pessoa não tem culpa, e sim o agressor. Falar, se expressar, mesmo que isso deixe a impressão de que iriamos ficar vulnerável, exposta, isso ajuda e muito. Às vezes, se você tem certeza que a reação da sua família ou qualquer pessoa que você escolha para compartilhar isso será ruim, então tenha cautela, pois você poderá ouvir o que não quer e o que não precisa e assim se tornar ainda mais magoada e machucada. Então se você não estiver preparada psicologicamente para ouvir algo negativo, preconceituoso, prefira contar isso primeiro para alguém que você sabe que não reagirá assim e que lhe oferecerá amparo, principalmente se essa for a primeira vez que você for dividir com alguém esse trauma.

Como fazer para que um trauma como o meu ou outro não tome conta de sua vida

Primeiro: Vá a um profissional que possa te ajudar, como pessoas que trabalham com psicologia. Eles são capacitados e sabem como proceder, o que falar, como ajudar, não possuem preconceitos e, o mais importante, estarão prontos para ouvir para você. Eles te farão se sentir amparada e irão te preparar para o mundo novamente. Pois faz parte do aprendizado deles saber o que dizer, saber aconselhar, orientar, fazer você sentir que sua vida vai voltar ao normal e eles estarão inteiramente ali para ajudá-lo a tornar tudo isso real. Então acredite neles e na capacidade deles.

Se você não se adaptou com o profissional que escolheu, não desanime. Tente outros até você se sentir segura e confiante com o profissional. Até porque, infelizmente, nem sempre a primeira escolha será a ideal. Mas não se culpe por isso jamais e lembre-se que o importante é não desistir de se ajudar, não desistir de querer  ter uma vida “normal” novamente. Digo normal no sentido de que a situação, o trauma, estará controlado. Ele não deixará de existir, mas não interferirá em cada ação que você tomar.

Segundo: Não deixe de se amar pela culpa ou porque você se enoja com o que lhe aconteceu. Sim, infelizmente, mesmo nós sabendo que não temos culpa, ela vem e junto a ela muita gente poderá vir com preconceito ou com comentários ignorantes sobre esse assunto para você. Sei que é difícil lembrar e pedir isso, mas tente não se abalar, pense que infeliz que essa pessoa é por lhe faltar conhecimento sobre esse assunto delicado. O máximo de sentimento que você deve sentir por esse ser é pena. Isso mesmo, você terá que ser forte e lembrar que você poderá controlar a intensidade de comentários e desilusões que as pessoas cometem com esse e diversos assuntos.

Terceiro: Não deixe de viver sua vida, não deixe de ser feliz. Sei que você terá medo de sair de novo, de confiar nas pessoas. Mas felizmente nem todas as pessoas a sua volta são ruins, nem todos pensam coisas repugnantes. Se você gostava de sair em festas, de se arrumar, se maquiar, usar vestidos, salto alto, continue fazendo as mesmas escolhas que te faziam feliz antes, não deixe de viver. Claro, tenha sempre a cautela de não andar sozinha à noite ou de ficar bêbada sem alguém que possa te ajudar depois, e cuide sempre do seu copo, pois facilmente alguém pode te drogar se você não ficar atenta o tempo todo.

E para casos como o meu, isso vai mais de recado para os pais do que para a criança, pois quando somos pequenos não vemos maldade, malícia. A verdade é que as crianças são ingênuas, inocentes e na visão delas todas as pessoas são boas. Então cabe aos pais dizer para elas não conversarem com estranhos e em qualquer dúvida falar com eles. É preciso ficar sempre com um olho aberto, pois todos podem representar uma ameaça a sua criança, seja amigos da família ou até mesmo a família. Então procurem manter um dialogo bem aberto com seus filhos para que se algo acontecer eles venham e contem isso a vocês. Claro que nem sempre isso será o suficiente para que a criança venha e conte, pois às vezes a vergonha, o medo e a culpa são muito maiores, impedindo assim de que a verdade venha a tona.

E um recado que deixo aqui especialmente aos pais: tem certas coisas que não conseguimos evitar que aconteçam com os filhos. Infelizmente, não temos o controle das pessoas a nossa volta para que assim conseguíssemos protegê-los infinitamente. Eles são o bem mais precioso que temos. Então, nem sempre isso será culpa de vocês, pois quantos casos são parecidos como o meu, em que a família sempre foi extremamente cuidadosa e presente e mesmo assim isso não bastou para que essa situação não ocorresse. Cuidem deles, suspeitem de todos, mas não vivam com essa culpa se por acaso isso acontecer. Até porque quem pensaria que a nossa própria família, sangue do nosso sangue, seria capaz de fazer atrocidades. Infelizmente, a nossa realidade nos mostra que é possível, sim, que isso ocorre frequentemente e na maioria dos casos infelizmente o nosso agressor é alguém próximo ou um familiar, seja padrasto(madrasta), primo(a), tio(a), avó(ô), irmão(ã), enteado(a)…

Como fazer para que um trauma sexual não atrapalhe sua vida sexual

Essa preocupação é uma das maiores quando você passa por uma situação como um trauma sexual, porque você não sabe como reagirá no momento e tem medo de que isso interfira na sua relação com o seu parceiro.

Então, se o seu trauma aconteceu quando você era uma criança apenas, primeiro busque ajuda – se possível, profissional – pois ela te ajudará a lidar com isso tudo e ainda por cima preparará seu psicológico para esse momento.

No meu caso eu fiz dessa forma: preferi perder minha virgindade com alguém em quem eu confiasse, que eu sabia que seria o mais compreensivo e cuidadoso comigo.

Primeiro, esperei o momento em que eu achasse mais adequado para dividir com ele a minha história. No meu caso, a reação dele foi bem complicada. Ele jamais esperava que o meu segredo fosse isso, mas tentei acalmá-lo, por mais que eu não entendesse por que ele não podia ser mais compreensivo comigo naquele momento já que quem sofreu e quem sofre até hoje eventualmente com isso sou eu. Contudo, ele foi tentando me entender e conseguiu. E para a minha sorte, no momento em que escolhemos para iniciar nossa atividade sexual ele foi cuidadoso, fez-me sentir confiante e segura, me tratou com muito amor e carinho, e foi aí que eu percebi que havia vencido mais uma etapa. Não tem sensação melhor do que aquela que mostra como somos fortes e essa foi uma prova para mim mesma. Fiquei feliz, pois aquilo que eu temia que podia acontecer, de travar e não conseguir ter uma vida sexual saudável, se mostrou bem menos forte do que eu imaginava.

Infelizmente, o mundo é cheio de injustiças e muitos de nós têm de viver com elas. Porém, acredito que se pudermos cada um fazer a nossa parte para amenizar o sofrimento dos outros, então aos poucos o nosso sofrimento também vai se curando. É por isso que decidi contar a minha história. Espero que esse relato ajude de alguma forma pessoas que estão passando ou passaram pelo o que passei.

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